Fragmentos da contemporaneidade em “Eles eram muitos cavalos” de Luiz Ruffato

Bárbara Pinheiro Baptista
Revista Subjetiva
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3 min readJul 12, 2019
Companhia das Letras. Divulgação.

“Eles eram muitos cavalos”, livro publicado em 2001 pelo escritor mineiro Luiz Ruffato, foi publicado pela primeira vez em setembro de 2001 e traduzido para diferentes idiomas. Recebeu prêmios importantes como APCA e Machado de Assis de melhor romance de 2001. A obra retrata o espaço urbano contemporâneo através de uma composição narrativa fragmentada. São flashes que incluem desde receitas culinárias a propagandas, ilustrando a cidade e seus diferentes habitantes de maneira não-linear.

COROA BOAZUDA — Negra, bonita, atendo em minha residência.
COROA CASADA 38 ANOS — Loira, seios fartos, faço oral total e anal, brincadeiras com acessórios.
COROA DISCRETA — Liberada, insaciável, realiza suas fantasias com acessórios, roupas, massagem erótica, lésbicas,
homens, mulheres.
DANY — Ele? Ela? Venha experimentar os prazeres e mistérios do sexo total. Atende a domicílio.

O tempo presente é captado e retratado por meio de partículas cotidianas. O autor faz uso de elementos oriundos dos meios de comunicação de massa, como excertos de jornais. É notória a representação do contemporâneo e sua relação com uma temporalidade marcada pela acentuada aceleração, materializada pela instantaneidade trazida pelas novas tecnologias.

Luiz Ruffato. Foto: Tadeu Vilani. Divulgação.

A obra nos oferece o retrato da experiência fragmentada, na qual as passagens, ainda que numeradas, não possuem uma relação de sentido clara entre elas. Cabe ao leitor, utilizando o seu arsenal subjetivo, organizá-las para decifrar um possível nexo. Trata-se de uma colagem de sessenta e oito histórias, cada uma com personagens próprios e ambientada em locais distintos. Há uma quebra, em relação às narrativas tradicionais no que concerne à relação entre o espaço, o tempo e as personagens. O fio condutor que aproxima esses relatos aparentemente tão desiguais consiste na apreensão da paisagem urbana paulistana num mesmo dia, uma terça-feira de maio.

- não sou insensível à questão social irreconhecível o centro da cidade hordas de camelôs batedores de carteira homens sanduíche cheiro de urina cheiro de óleo saturado cheiro de a mão os cabelos ralos percorre (minha mãe punha luvas, chapéu, salto alto para passear no viaduto do chá, eu, menino, pequenininho mesmo, corria na) este é o país do futuro? deus é brasileiro? onde ontem um manancial hoje uma favela onde ontem uma escola hoje uma cadeia onde ontem um prédio do começo do século hoje um três dormitórios suíte setenta metros quadrados. (Ruffato, 2001, pp. 36–37)

Trata-se de um verdadeiro mosaico constituído por listas, anúncios, cardápios, cartas, entre outros. O efeito da rapidez e dinamicidade dos centros urbanos é perceptível nas diferentes formas textuais empregadas em cada história. A metrópole é descrita em toda a sua pluralidade humana através de seus pedaços. Esses indivíduos estão sempre em deslocamento, fazendo parte de diferentes classes sociais e possuindo personalidades singulares. A condição desses sujeitos é delineada em toda a sua diversidade, retratando as dores e prazeres dos residentes da cidade grande. Assim, a grande protagonista da obra é a cidade e tudo o que ela abarca: a violência, o trânsito, o caos e as figuras anônimas que diariamente transitam por ela. As vozes presentes nos retalhos construídos pelo autor mostram múltiplos modos de viver e entender o espaço citadino de acordo com a sua história de vida. São personagens de muitos extratos sociais: negros, indígenas, trabalhadores, mulheres, homens de classe média, etc.

Através dessas pequenas amostras de suas realidades, é possível apreender questões fundamentais da contemporaneidade, envolvendo o mundo do trabalho, a realidade feminina e as relações desiguais de poder. Empregando e uma narrativa caracterizada pela descontinuidade e fazendo uso de uma pluralidade de linguagens, Ruffato constrói um retrato da cidade de São Paulo e seus atores sociais

Eles eram muitos cavalos - Companhia das Letras, 2013, 136 páginas.

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Bárbara Pinheiro Baptista
Revista Subjetiva

Escritora, historiadora e educadora. Mestre em História pela UFRRJ.