Get Back: beleza e melancolia no começo do fim dos Beatles
São quatro da manhã no momento em que estou escrevendo isso.
Ontem, no finzinho da tarde, terminei de assistir o novo documentário dos Beatles, Get Back, produzido pelo Peter Jackson (sim, o diretor de Senhor dos Anéis) e lançado no final de novembro no Disney+.
Logo quando acabou, fui caçar na estante o meu exemplar do Beatles Antologia. O livro por si só é um objeto histórico: lembro que comprei com um desconto bem grande por volta de 2015, numa grande liquidação “pós-falência” de todos o catálogo da editora Cosac Naify.
Passei o resto da tarde folheando o livro, ouvindo as músicas. Simplesmente não consegui parar.
Quando deitei na cama, mais ou menos à meia noite, achei que ia conseguir dormir logo. Mas não consegui. Fiquei pensando, pensando, pensando.
Desisti de dormir. Acho que só vou conseguir depois de escrever isso aqui.
Então vamos logo.
1. Minha relação prévia com os Beatles
Ao mesmo tempo, os Beatles são uma das bandas que mais fizeram parte da minha vida e uma das que menos me interessei em me aprofundar. No comecinho da minha adolescência, ganhei um CD do meu avô com quase todas as músicas deles. Não liguei muito para o presente logo quando chegou. Foi algum tempo depois (quando eu já tinha uns treze anos) que tive curiosidade e comecei a escutar os arquivos .mp3 que estavam guardados numa pasta do meu computador.
Nunca esqueci da primeira música que me pegou: Penny Lane. Lembro bem do momento em que, ouvindo descompromissado e meio a contragosto, querendo não gostar por ser algo “de velho”, tive um momento de euforia com a percepção de que gostava muito do que estava ouvindo.
Na mesma época, ganhei meu primeiro iPod Classic que entupi de músicas dos Beatles. Eu passei boa parte do período entre 2008 e 2010 escutando os mesmos dez álbuns deles que tinha lá. Quando saía de ônibus, ouvia Beatles. Quando eu caminhava pra escola, ouvia Beatles. No intervalo das aulas, eu conversava com as pessoas com só uma orelha livre e na outra deixava tocando Beatles. Quando meu cabelo estava suficientemente comprido pro fone de ouvido não ficar aparente, eu às vezes ouvia Beatles escondido durante as aulas também. Quando chegava em casa, eu lia e jogava bastante (no videogame ou no computador) e fazia essas duas coisas boa parte das vezes escutando Beatles. Na hora de almoçar, eu lia gibis enquanto escutava Beatles.
No finalzinho de 2010, quando eu tinha quinze anos, meu avô e eu fomos numa Fnac e ele comprou para mim um boné e uma boina dos Beatles. No ano seguinte, eu mudei de colégio. Eu gostava tanto do boné que ia com ele pras aulas quase todos os dias. Com isso eu ganhei o apelido “Beatle” que me acompanhou por todo resto do meu Ensino Médio. Até hoje, quem me conheceu naquele tempo me chama assim.
Mas foi ao mesmo tempo que ganhei o apelido que a banda em si foi perdendo um pouco do espaço que tinha na minha vida. Lembro que em 2011 eu descobri o “último” álbum dos Beatles (na verdade o segundo em ordem de lançamento) que até então eu não tinha escutado: With the Beatles, de 1963. Eu tentei “guardar” com o único álbum deles que não ouviria para salvar algo de novo para ouvir no futuro, mas não resisti nem uma semana nessa promessa.
Ouvir este álbum que faltava foi como uma conclusão para aquele primeiro momento que tive com a banda. Depois disso, sempre que os escutei tive uma certa nostalgia e associação com aqueles anos da minha vida, mais ou menos de 2008 até o começo de 2012, com a maneira que eu vivia naquela época e também com o amor pelo meu falecido avô que foi quem me apresentou suas músicas.
Continuei os ouvindo ocasionalmente depois disso, mas nunca mais tive aquela mesma proximidade que tinha e, conforme meu gosto musical foi se diversificando e fui descobrindo coisas novas, Beatles foi se distanciando cada vez mais da minha rotina.
Ainda assim, apesar de toda essa minha obsessão juvenil, o contato que eu tinha tido com Beatles até então era bastante superficial. Naquele meu início de adolescência, meu inglês ainda era bem precário e eu não fazia a menor ideia do que a maioria das músicas falava (aliás, sempre me pergunto o que me obcecava tanto nelas se não entendia direito o que a maioria dizia). Além disso, eu propositalmente evitava me contextualizar: eu não saberia o nome dos quatro integrantes do grupo, se me perguntassem, nem os anos de cada álbum, nem nenhuma informação sobre a história da banda. O que eu sabia eram os nomes das músicas e dos álbuns, nada mais do que isso.
Eu tinha um pouco de aversão em pensar nas pessoas por trás da banda. Achava bobo me envolver com a historinha de bastidores, saber as fofocas, ver os clipes. Não queria dar rostos para aquelas vozes. O que me importava era a música — e só.
Por isso, com o passar dos anos os meus reencontros com Beatles foram sempre carregados com novas informações. Ao mesmo tempo, eu era um fã fanático e um leigo. De pouco em pouco, conversando com pessoas, absorvendo referências ou menções à banda em outros conteúdos (filmes, seriados etc.) ou com um pouco mais de curiosidade eventual, fui descobrindo o básico: um mínimo sobre quem eram aqueles quatro músicos, de onde eles eram, qual era o contexto histórico das músicas, esse tipo de coisa. Conforme meu inglês foi evoluindo, os Beatles também se transformaram numa banda agradável de se revisitar — agora as letras eram fáceis de entender. Eu gostava das mensagens que agora compreendia.
Mesmo assim, nunca me transformei num dos fãs que acompanhava cada notícia, que sabia cada take disponível de cada música, que tinha visto todos os filmes, clipes etc. Ainda evitava o máximo possível tudo isso.
Até hoje, não devo ter visto mais do que uns dois ou três clipes deles (e agora fico feliz com isso porque, depois de ver Get Back, tenho vontade de assistir todos). Lembro vagamente de alguma coisa do clipe de Strawberry Fields e só.
Exceto as músicas “oficiais” dos álbuns principais, eu só tinha escutado a versão alternativa do Let It Be (por sorte, já que vou falar bastante dela nesse texto) e o terceiro volume do Anthology (uma coletânea de takes mais inacabados de várias músicas). Mesmo isso escutei sem querer porque estavam também nos arquivos que ganhei do meu avô.
Além das músicas, eu só tinha lido o Pequeno Livro dos Beatles, que é um quadrinho bem superficial sobre a história da banda, e folheado o já mencionado livro do Anthology, que apesar de ter comprado há anos nunca tinha parado pra ler direito por falta de interesse.
E foi assim que eu cheguei a Get Back.
A princípio não me interessei nem um pouco. Não fiquei acompanhando trailers antes do lançamento. Mesmo quando saiu, demorei alguns bons dias antes de dar uma chance.
Quando sentei para assistir, foi só por um filete muito frágil de curiosidade e eu não estava muito animado. Com certeza eu não tinha esperança de que fosse aguentar assistir tudo.
Então foi uma grande surpresa o que aconteceu comigo vendo isso. Não só assisti tudo, como assisti os dois primeiros episódios de uma vez, mais de cinco horas direto sem parar. Só dormi algumas horas e logo ao acordar no dia seguinte voltei para terminar de assistir as outras duas horas que faltavam.
Foi uma experiência muito emocional para mim por vários motivos, que me fez rir e chorar várias vezes assistindo e que me deixou depois sem conseguir pensar em outra coisa pelo resto do meu dia.
Eu tive até uma insônia, horas me revirando na cama, que me fez sentar pra escrever isso aqui no meio da madrugada.
Então quero tentar descrever um pouco o que vi de tão especial nisso tudo. Pra outros fãs da banda, alguns pontos do que vou dizer podem parecer obviedades, se eles descobriram algumas dessas coisas de outras maneiras, e foi um pouco por isso que achei importante dar o contexto de qual é a minha relação com os Beatles. Foi com Get Back que eu tive muitas dessas percepções — e acho que foi um bom jeito de chegar a elas.
Para quem não conhece, talvez seja um convite para dar uma chance pros Beatles. Eu não sei se recomendo o documentário Get Back como um primeiro contato (por motivos óbvios, afinal são sete horas), mas realmente acho que vale a pena para qualquer um tentar ouvir algumas das músicas. Se por acaso você nunca ouviu e quiser dar uma chance, não é difícil: os Beatles são bastante acessíveis e dá pra começar sem muitos problemas com um álbum coletânea como o Past Masters ou o One, ou até com a playlist This is Beatles do Spotify.
Agora vamos começar a falar da banda e do documentário em si.
2. Quem são os Beatles e o que é Get Back?
Uma contextualização muitíssimo básica porque ninguém é obrigado a conhecer o grupo: os Beatles foram uma banda de rock que lançou 12 álbuns de estúdio entre os anos de 1963 e 1970. Foram um fenômeno cultural, uma das bandas mais bem-sucedidas da história e o maior símbolo da cultura pop nos anos sessenta. Começaram como uma bandinha adolescente cantando músicas melosas e terminaram com propostas mais maduras, experimentalismo e letras e melodias que o mundo inteiro conhece.
A formação principal e clássica da banda foi de quatro pessoas: o guitarrista John Lennon e o baixista Paul McCartney, que compunham a maioria das letras e que trocaram a liderança (na primeira fase, o líder era John; na segunda fase, Paul assumiu mais esse papel). O também guitarrista George Harrison, que era mais novo e que foi deixado de escanteio durante muito tempo para dar destaque à dupla Lennon-McCartney. E Ringo Starr, o baterista que não ligava muito pras disputas internas do grupo.
Os quatro eram de Liverpool, uma cidade de pescadores no meio da Inglaterra, e se conheciam desde moleques. John e Paul, por exemplo, se toparam pela primeira vez esperando o ônibus que os levava pro colégio. Harrison entrou logo depois, ainda nessa fase bem juvenil da banda. O único membro tardio foi Ringo, que entrou em 1962 quando os Beatles começavam a se profissionalizar, já mais num esquema de “contratação”, porque o primeiro baterista da banda tinha saído.
Apenas porque é importante conhecer esses estereótipos já que o documentário (e consequentemente esse meu texto ) desconstrói um pouco todos eles, os quatro recebiam muitas vezes as seguintes alcunhas:
- Lennon era chamado de “o beatle inteligente” por seu ativismo político e experimentalismo;
- McCartney era dito “líder dos Beatles” ou o “beatle comercial”, por ter se tornado o rosto da banda e por seu talento musical para criar grandes hits;
- Harrison era conhecido como “o beatle místico” por seu interesse na espiritualidade, sobretudo nos movimentos religiosos da Índia;
- E Ringo era… Bem, ele era só “o outro Beatle”, por sua postura principalmente apaziguadora e secundária (que o tornou alvo de muitas piadas).
Passado esse resuminho da banda, agora sobre o documentário em si: Get Back é um registro de mais de sete horas, dividido em três episódios, cada um com mais de duas horas cada, contando exclusivamente o período de gravação de mais ou menos um mês que aconteceu em janeiro de 1969 quando os Beatles se reuniram para tentar compor novas músicas e talvez fazer um novo show.
É basicamente isso. São sete horas exclusivamente disso.
O momento registrado é ponto chave da história da banda. Só alguns meses depois do período retratado no documentário, os Beatles acabariam. No lado artístico da coisa toda, eles já tinham passado do seu ápice de popularidade e novas bandas e movimentos musicais estavam surgindo. No lado pessoal, as relações entre os quatro integrantes já estavam muito desgastadas. E o lado artístico estava prejudicando o pessoal, e vice-versa.
Então Get Back acontece nesse curioso interlúdio entre toda a história pregressa da ascensão e topo dos Beatles e o fim que viria logo em seguida.
Nesse meio-termo, dá pra ver a cada segundo se misturarem tanto as razões que levaram aquilo a dar certo por tanto tempo, que fizeram deles o fenômeno que foram, quanto as razões para aquilo tudo começar a dar errado e estar prestes a acabar.
E essa ambivalência é um dos pontos mais fundamentais e emocionalmente confusos de se assistir durante todas as sete horas.
O álbum que saiu do processo de gravação (Let It Be) foi um produto que não fez ninguém envolvido muito feliz. Tanto que o álbum foi “engavetado” e os quatro voltaram depois ao estúdio para gravar um novo álbum diferente, agora sim o seu último (Abbey Road), que saiu ainda em 1969, alguns meses depois do período registrado em Get Back.
Como só saiu em 1970, mesmo tendo sido gravado antes de Abbey Road em 1969, o álbum Let It Be acabou gerando uma confusão cronológica. Apesar de ser o último álbum lançado dos Beatles, o adeus verdadeiro da banda está em Abbey Road, que conta com um longo medley de despedida (do qual faz parte minha música favorita da banda, You Never Give Me Your Money) e que se conclui apropriadamente com uma música chamada The End.
Então ver Get Back é saber que o que se assiste é, de certa maneira, um processo em direção ao fracasso: as sete horas do documentário produzem um álbum que ninguém quis nem lançar.
Isso está em tudo, do nome às escolhas de edição das músicas: o documentário se chama Get Back porque este era o nome original do projeto, que dava mais corpo conceitual à proposta de fazer uma “volta às origens” da banda; o álbum engavetado foi “recuperado” por um produtor que fez uma remixagem controversa, adicionando várias trilhas instrumentais de fundo para o que na proposta original, também de acordo com o tema de volta às origens, devia ser um álbum acústico e simples. Essa nova versão remixada foi a lançada oficialmente, agora como Let It Be.
Se a banda já não gostava tanto do material quando foi produzido, essa versão tardia, produzida em contradição à proposta de simplicidade original e lançada quando a banda já estava derretendo, não ajudou em nada.
Ao mesmo tempo, a história de Let It Be é um pouco mais complicada do que parece. Eles podiam estar “menos bons”, mas nunca foram ruins. Um álbum fraco dos Beatles ainda é um grande álbum dos Beatles.
3. A beleza dos processos criativos
Em 2003, décadas depois do lançamento oficial de Let It Be, foi lançada a versão Let It Be… Naked do álbum que tem as música sem a remixagem exagerada, como deveriam ser originalmente — e como aparecem no documentário Get Back.
Particularmente, eu acho essa versão bem melhor do que aquela lançada em 1970. Quando penso nessas músicas, é a versão acústica que costuma vir à minha cabeça. E é sobre elas principalmente que o documentário trata.
Acústicas, acho as músicas muito boas. Algumas delas eu já gostava bastante antes de ver o documentário — Don’t Let Me Down, a própria Let It Be, Get Back, I’ve Got a Feeling and The Long and Winding Road eram (e continuam sendo) as minhas favoritas.
Mas ver o documentário me fez entrar no processo artístico da banda e passei a ver com outros olhos algumas músicas que até então não gostava tanto, especialmente Two of Us e Dig a Pony.
As sessões de Get Back também não ficam restritas ao que viriam a ser as faixas do Let It Be. Algumas músicas que só apareceriam no álbum seguinte, Abbey Road, e até algumas que só apareciam na carreira solo dos quatro nos anos setenta, começam a brotar como esboços aqui e ali.
Mesmo entre as músicas que eu gostava, o impacto é outro ao conhecer o processo. Se I’ve Got a Feeling já era maravilhosa, ver o perfeccionismo envolvido em todos os dias de esforços para aperfeiçoá-la é algo muito interessante. A ideia para a letra dá voltas e voltas, embora durante todo o caminho a força da música esteja óbvia para todo mundo envolvido.
O contrário acontece com Don’t Let Me Down: é minha música favorita desse álbum, uma das minhas favoritas entre todas as que eles fizeram, mas o processo é sofrido. As primeiras versões são horríveis. Por dias e dias, durante semanas, os quatro Beatles tentaram várias vezes melhorar a melodia e a letra sem muito sucesso.
Em outros casos, a facilidade com que algumas grandes músicas parecem “brotar” quase prontas é inacreditável. McCartney traz ao mundo o esqueleto de Get Back em segundos, como se não fosse nada. Let It Be e The Long and Winding Road já aparecem desde o começo quase perfeitas.
É muito curioso assistir Get Back e às vezes ficar completamente boquiaberto pela beleza do que está acontecendo, só para que ao final do take alguém diga “não ficou bom, vamos fazer outro” ou “ainda dá pra melhorar”. É de um perfeccionismo que não tem fim e que para mim, como mero ouvinte, parece absurdo. Honestamente não entendo o que foi que desagradou tanto os quatro Beatles na versão acústica de Let it Be, ao ponto de engavetarem o álbum. Ele já era incrível como era.
Apesar de não entender tecnicamente, tenho minha suposição mais emocional: acredito que, mais do que as músicas em si, o que incomodava todo mundo sobre Let It Be era o processo mesmo, o momento de desgaste das pessoas envolvidas, os conflitos e problemas pessoais. A banda naquele ponto estava prestes a ruir e as memórias dessa época não devem ser particularmente felizes para nenhum deles.
É é com isso que entramos no próximo ponto.
4. Sentimentos agridoces
Assistir Get Back parece um pouco com ver os últimos dias de um casamento antes do divórcio, quando as pessoas ainda se amam, mas sabem que não vai dar certo continuarem juntas.
Parece também uma espécie de “prévia de funeral”, mas estranhamente festiva, em que todos lamentam sutilmente enquanto fazem piadas por algo que logo vai acabar.
Esse “logo vai acabar” é o ingrediente principal do sentimento duplo: por mais óbvio que possa parecer, dizer que “vai acabar” significa que ainda não acabou. Apesar de mostrar os conflitos e os desgastes, Get Back também mostra muito das relações íntimas de amizade, construídas durante anos e anos vivendo juntos.
Dá pra ver que, para além de todos os problemas, aquelas pessoas de fato ainda se gostavam muito e tinham muita intimidade umas com as outras.
Deve ser por isso, inclusive, que a melancolia acontece: o que se vê acabar aos poucos é algo que ainda se ama. Todos eles parecem lutar uma dupla batalha, divididos entre tentar aceitar o fim ou se apegar e tentar impedi-lo. Se todos se odiassem durante as gravações, se o clima fosse sempre invariavelmente terrível, o término da banda seria só um alívio. Mas está longe de ser o caso: mesmo nesses últimos meses, eles parecem grandes amigos na maior parte do tempo.
Nisso, também entra um outro elemento dos Beatles que eu já tinha visto ser mencionado, mas que não tinha presenciado: o humor. Insistindo na metáfora do velório, é como se os quatro observassem lentamente a degradação de algo muito valioso, mas insistindo em fazer graça durante cada pequeno momento do processo.
Às vezes, parece que as brincadeiras são até um mecanismo de defesa: nas situações mais caóticas e tensas, piadas ainda insistem em aparecer, mesmo quando são amargas e irônicas. Em alguns casos, elas parecem tentar iludir os próprios integrantes do grupo de que eles não se importavam tanto com o que estava acontecendo.
Um dos momentos mais emblemáticos disso acontece quando os quatro leem em tom de piada uma notícia apocalíptica de um repórter sensacionalista que fala sobre “a decadência dos Beatles” e sobre como todos eles “se odeiam e só estão trabalhando juntos ainda pelo dinheiro”. Apesar do texto ser maldoso e exagerado, existe uma semente de verdade no que é dito; rindo, os quatro simplesmente fingem que é tudo mentira. As piadas tentam afastar a realidade, tirar o peso, ridicularizar os abutres, evitar o fim e curar todos os problemas — ou, pelo menos, fingir que esses problemas não existem, ou que não são tão importantes assim.
Assistir Get Back é, nesse sentido, ver uma batalha constante contra problemas insolucionáveis em que se tenta usar do humor como arma para conquistar alguma leveza e vencer. E é algo ao mesmo tempo muito inspirador e um pouco triste de se assistir, considerando que essa batalha já começa perdida.
É agridoce ver gente que se ama vivendo bons momentos quando estão cientes de que esses bons momentos são também os últimos que viverão juntos.
E, apesar disso, é tão bonito e divertido!
Parece um milagre que um ambiente tão acolhedor, engraçado, criativo, dinâmico e humano tenha existido. Mesmo com todos os problemas, pensar no estúdio de gravação dos Beatles em Get Back é pensar em um ambiente que ainda parece um “lugar feliz”, um espaço em que eu me sentiria feliz de estar, mesmo nos dias de clima tenso.
Se esse ambiente tão desejável é o que os membros da banda definiram como “infernal”, eu só posso imaginar como deve ter sido um encontro realmente bom e produtivo dos quatro em alguma das suas boas fases anteriores.
Isso, inclusive, leva para um próximo ponto importante: como é surpreendente, cinquenta anos mais tarde, ver essas pessoas tão próximas e tão humanas.
5. Humanos e estranhamente familiares
Se você ver as fotos antigas, ainda mais aquelas em preto e branco, e se ouvir as músicas, principalmente as das primeira fase, é inegável e inevitável perceber os Beatles como algo muito, muito velho. Os anos sessenta não aconteceram exatamente ontem e a época tem vários trejeitos e características que hoje parecem bem caricatos.
É justamente isso que dá tanto impacto e tanta potência para o jeito que os Beatles se comportam nas gravações de Get Back. Eles parecem viajantes do tempo, pessoas do presente vivendo num mundo do passado. Sendo gravados em 1969, nenhum deles parece “datado”: falam, comportam-se, pensam e fazem piadas de um jeito que parece tão próximo quanto contemporâneo.
Consegui pensar em várias pessoas e conversas por que passei que foram no mesmo “estilo”, isso no Brasil do século XXI. É muito estranho ver os comportamentos descontraídos e despojados que me parecem tão familiares como jovem dos anos 2010, a juventude e sinceridade sarcástica que presenciei a vida toda, tudo isso em ingleses dos anos sessenta.
Eu sempre ouvi que “cada Beatle tinha um papel na banda” e sempre pensei nisso com muito cinismo (em parte também por minha aversão e desconfiança para com qualquer informação sobre a banda). Parecia uma ideia “panos quentes”, coisa de discurso publicitário, para tentar atribuir importância a todos. Eu tinha o mesmo ceticismo para com a relação deles, que sempre foi descrita em termos positivos, principalmente quando falavam sobre esses anos finais que todo mundo sempre soube que foram muito atribulados.
Sem ver as gravações, era difícil entender a contradição de que sim, eram momentos atribulados e tensos, mas eles ainda eram tão amigos e se davam tão bem. Era difícil entender o que queriam dizer quando falavam sobre “cada um ter seu papel”. No documentário, com todas as nuances, essas duas questões ficam evidentes.
Acho que nesse sentido quem sai mais beneficiado do documentário é o Ringo. A ideia de que ele é uma figura silenciosa, mais calma e amigável, que serve sempre como contraponto de tranquilidade pra manter a coesão do grupo, parecia pra mim uma invenção meio boba que tentava dar algum lugar pro membro mais desimportante da banda. Vendo Get Back, dá pra ver que esse papel-chave dele não é propaganda, é verdade: o Ringo era de fato uma figura fundamental nessa função muito difícil de descrever, a de “manter o clima”, e agora eu entendo porque dizem que sem ele a banda teria acabado muito antes.
Outra coisa difícil de ser comunicada só com citações e textos, mas que me chamou muito atenção, é a personalidade de Lennon. É uma tarefa complicada tentar entender e descrever todos os lados e aspectos do Lennon que aparece em Get Back.
As informações “duras e frias” eu já conhecia pelas fofocas: em 1969, Lennon estava passando por um dos períodos mais infernais da própria vida. Ele tinha acabado de se divorciar, sua nova esposa (Yoko) tinha sofrido um aborto, ele estava com um problema de vício em metanfetamina e detestava a situação dos Beatles. Era sabido que Lennon era uma pessoa amarga nesse período, então fui para Get Back supondo que encontraria alguém insuportável, uma pessoa muito difícil.
E tudo isso é verdade, principalmente no primeiro episódio. Dá pra ver como Lennon estava em conflito e amargo, principalmente na sua decisão (um pouco ridícula) de andar grudado com Yoko o tempo todo, mantendo-a como uma figura etérea, quase uma assombração, sempre presente nos enquadramentos de Get Back sem quase nunca falar nada, na maior parte do tempo fazendo caretas (normalmente de tédio).
A culpa não é dela, é dele: é Lennon quem quebra as barreiras entre o relacionamento profissional, o vínculo com os amigos e o relacionamento com Yoko, principalmente porque para ele naquele momento o relacionamento profissional e com os amigos já estava muito longe de ser a prioridade.
Ao mesmo tempo… O Lennon de Get Back é surpreendentemente gostável. Vendo o que (talvez) seja o pior e mais insuportável momento dele em sua trajetória com a banda, eu saí gostando dele muito mais do que gostava antes. Ele está sempre brincando, fazendo alguma voz engraçadinha, uma careta, um comentário bobo. Mesmo quando é amargo, ele faz isso com piadinhas. É de longe o mais divertido entre todos de se assistir, embora fique evidente que ele não devia ser tão divertido assim de se conviver.
Nos dias em que está bem, existe em Lennon mais do que em qualquer um uma energia muito boba e leve de moleque, mesmo nessa fase em que os quatro estão quase chegando aos trinta anos. Ele é o mais debochado e, a grande surpresa, o que menos se leva a sério. Ao mesmo tempo, é o mais interessado em temas importantes, em entender melhor o mundo, em quebrar barreiras e investir em experimentalismo. Quando está alheio (seja por estar cansado, entediado ou drogado), é introspectivo e rabugento, parecendo quase outra pessoa. É uma mistura muito esquisita e contraditória de um menino e um gênio, de uma pessoa amarga e problemática com alguém leve e divertido.
E, humanizando tanto Lennon, vendo como mais uma pessoa que eu poderia ter conhecido conversando numa festinha ou na faculdade, é mais absurdo pensar na morte que ele teve, assassinado por um fã fanático. O Lennon que aparece em Get Back parece demais com uma pessoa real para ser vinculado com esse tipo de fim.
Normalmente, quando pensamos em figuras como celebridades, as desumanizamos e distanciamos um pouco. Quando se pensa em “Lennon” como ícone, como figura famosa e histórica, parece fazer mais sentido que ele tenha sido assassinado por um fã na porta de sua casa. Mas ver o Lennon como pessoa de Get Back é ficar tão surpreso e melancólico por esse fim quanto se ficaria ao saber que um primo passou por algo assim, ou que algum amigo de faculdade terminou bizarramente morrendo desse jeito.
Além da melancolia do fim da banda, ver Get Back carrega essa nostalgia de ver quatro pessoas de cinquenta anos atrás, sendo que duas delas já estão mortas. É estranhíssimo olhar pra George Harrison, aqui tão jovem, e pensar que ele viveu décadas e décadas depois de janeiro de 1969 até falecer em 2001. Tão estranho quanto é ver ele e Lennon juntos e pensar que os dois já se foram.
É surpreendente ver Paul McCartney, principalmente, pensando que aquele homem tinha mais ou menos minha idade atual quando Get Back foi gravado, cinquenta anos atrás, e agora tem quase oitenta anos. Com minha idade, ele tinha realizado tudo que havia para se realizar e ainda tinha talento e ambição para fazer muito mais. Era cheio de vida, de vontade de organizar e fazer dar certo, de construir.
Paul é de longe o mais comprometido dos quatro, o mais interessado em fazer aquele projeto ser viável, sustentável e capaz de dar bons frutos. Parece ser o mais apegado à ideia dos Beatles e à noção de mantê-los vivos. É irônico ver isso em tela considerando que, meses depois, seria ele quem anunciaria (antes da hora que os quatro tinham combinado para anunciar) o fim da banda. O processo que levou a essa mudança de comportamento é algo que as câmeras não mostraram.
Enquanto assistia, fiquei pensando como Paul e Ringo devem se sentir vendo isso. De novo, pelo distanciamento, parece mais fácil ser cético e não acreditar muito quando artistas dizem que tem algum vínculo verdadeiro. Vendo Get Back, dá pra perceber claramente que aqueles quatro homens são amigos que passaram a maior parte de suas vidas até então juntos quase o tempo todo, mesmo que estivessem começando a esboçar seus caminhos em separado naquele começo de 1969.
Como deve ser para os dois ainda vivos assistir às gravações minuciosas dos seus momentos como homens jovens com amigos que já morreram? Como eu vou me sentir no futuro, revisitando registros meus com meus amigos de juventude, se algum deles falecer antes de mim?
6. Uma observação rápida sobre os nomes
Quero voltar por um segundo à questão dos dois nomes desse projeto para fazer uma observação sobre como estão associados com a própria postura dos membros da banda no período.
Get Back, como conceito criativo até mais do que como a música finalizada, é sobre nostalgia, sobre apego ao passado e sobre a tentativa de recuperar algo que está se perdendo com o tempo. Carrega essa ideia de tentar voltar para as próprias raízes, tentar retomar o que “dá certo” e reencontrar uma felicidade que se perdeu pelo caminho.
Não acho que seja coincidência que tanto a música quanto esse conceito para o projeto tenham partido de Paul. Naquele período, era ele o mais apegado aos Beatles, aquele menos disposto a ver a banda acabar e em maior negação sobre o fim iminente. A postura “Get Back” (se comprometer, tentar fazer funcionar, ficar obcecado em tentar ressuscitar algo que já definhava) é representada no documentário principalmente por ele, mas em muitos momentos influencia todos os outros.
Paul tenta toda hora ser pragmático e dar coesão e motivação para que as coisas aconteçam — e isso tem um duplo papel que o torna ao mesmo tempo peça fundamental para que algo saísse das sessões caóticas de gravação, mas também o transforma em uma figura um pouco autoritária e chata. Ele não quer deixar ir.
Let It Be, como letra e como conceito, parece carregar uma ideia de “seja o que for pra ser”, uma resignação quase passiva — uma aceitação de que o que tiver que ser, será. Parece apropriadíssimo para o nome de um último álbum dos Beatles: é isso, esse é o fim mesmo, e let it be the end, se assim precisar ser.
Essa postura também parece encarnada na banda em vários momentos (a própria música é também do Paul), mas aparece principalmente em Lennon. Embora de uma maneira muito menos explícita do que se imaginava antes do documentário (Lennon se comunica principalmente através de indiretas e piadinhas), é ele quem coloca em cheque toda hora questões como: por que estamos fazendo isso? Por que estamos insistindo em algo que não está mais funcionando? Por que estamos tentando realizar este get back pra um passado que acabou ao invés de let it be e irmos viver a próxima fase das nossas vidas?
Eu sempre achei que o álbum devia se chamar Get Back, como era a intenção original. O título Let It Be já me parecia ruim na versão original e na versão “Let It Be… Naked” principalmente parece até ofensivo. Se essa versão naked tinha a ideia de trazer a proposta original de volta, por que não chamar logo de Get Back?
Hoje, acho interessante pensar na dualidade desses dois nomes e sobre como ambos representavam posturas que se complementavam no presente da banda em 1969: Get Back, de um lado, olhava para o passado, para a década de grandes coisas que os quatro tinham feito juntos; Let It Be, de outro, olhava para um futuro em que, separados e se livrando do apego aos Beatles, os quatro viveriam outros projetos e fariam outras coisas que sempre quiseram fazer.
É um atrito entre dois momentos, passado e futuro, naquele presente construídos como dois lados de uma argumentação, cada um com seus desafios e tentações: em Get Back, a saudade e o apego; em Let It Be, o desejo de deixar o que passou para trás e experimentar o novo.
7. A mística do último show como algo lendário versus o último show como algo real que nem foi lá essas coisas
A imagem que passou pra história foi a seguinte: os Beatles reunidos num telhado, cantando músicas juntos pela última vez com o céu de Londres como pano de fundo e pessoas nos prédios ao redor assistindo. Parecia tão simbólico, tão planejado e tão bonito. Esse show no terraço foi mencionado várias vezes em artigos e listas como um dos momentos mais impactantes da trajetória da banda e da história da música pop.
E na verdade não foi tudo isso.
Na verdade, foi bem decepcionante e até um pouco amador.
No final do projeto Get Back, os quatro decidiram fazer sua última apresentação ao vivo para uma plateia. Como tudo no projeto, tem algo de frustrado nesse último show: eles tiveram que mudar de lugar várias vezes e, como uma ideia meio de última hora, decidiram fazer o show no telhado do prédio da gravadora.
Sempre ouvi falar desse show como algo histórico e icônico — e foi mesmo, pelas gravações, pela situação de fim da banda, pelas músicas.
Mas assistir às gravações é ver também outras histórias: aquela das pessoas que estavam no nível da rua, tentando entender o que acontecia, e que reclamavam porque lá de baixo só conseguiam ouvir muito mal aos Beatles, mas não dava pra ver nada. É ver a história de senhorinhas ranzinzas porque o show estragou sua soneca da tarde e ver gente reclamando que não estavam entendendo nada, inclusive porque o áudio estava péssimo e porque ninguém conhecia ainda nenhuma das músicas, já que tocas eram até então inéditas. É ver também aquela história de um show que era pra ter apresentado bem mais músicas, mas que acabou prematuramente porque a polícia chegou e obrigou os músicos a pararem.
A mística da coisa toda se perde vendo Get Back. Esse show do terraço era lendário, distante e icônico: agora que parece humano e próximo, algo se ganha e algo se perde. É frustrante ver os policiais chegarem e obrigarem o último show dos Beatles a acabar antes da hora. É mais frustrante ver isso sabendo que aquela seria a última vez que os quatro tocariam juntos fora de um estúdio.
E quando o próprio documentário acaba depois disso, é frustrante saber que acabou. Eu achava que não ia aguentar assistir sete horas direto de um documentário sobre a gravação de um álbum. Mas eu assisti e no final fiquei triste por não poder assistir o dobro, o triplo do tempo.
Eu queria um documentário detalhado do mesmo jeito (que não existe, porque não foi gravado) sobre o que aconteceu na sequência: depois de Get Back, como foram as gravações de Abbey Road? Fico pensando nesse álbum seguinte que deve ter sido ainda mais contrastante: um clima bom no set, músicas incríveis que deixaram todos bem mais satisfeitos, um álbum final que foi muito melhor, mas um último álbum de fato, de frente para a melancolia do fim. E fico pensando nos álbuns anteriores: se Get Back, tão problemático, foi uma experiência tão incrível de assistir, como devem ter sido as gravações nos “tempos de ouro” da banda, no máximo de sua juventude, criatividade e amizade, em álbuns como Rubber Soul, Revolver, Sgt. Peppers?
E nunca saberei como foram esses outros períodos com a mesma riqueza de detalhes: é muito irônico e ao mesmo tempo perfeitamente adequado que o período de Let It Be, talvez o momento mais conflituoso de toda a história dos Beatles, tenha sido justamente aquele que foi tão extensa e desproporcionalmente documentado, o único com tanto material guardado.
Um parêntesis: não expliquei no texto que essa discrepante quantidade de material guardado sobre esse único mês especificamente (mais de sessenta horas de vídeo, da qual se editaram as 7 horas do documentário, e mais de 150 horas de áudio) só existe porque, durante as sessões de Get Back, um diretor estava gravando tudo com a intenção de transformar depois num filme sobre a banda. Quando o projeto todo foi engavetado, o filme também foi junto. Quando o álbum Let It Be foi “desengavetado” em 1970, o filme Let It Be foi também, agora já com a aura de ser “o último filme dos Beatles” e aquele que devia explicar o fim da banda. O filme original é muito mais curto do que o documentário Get Back (só uma hora e vinte minutos) e muito mais denso, já que se foca só nos piores momentos da história, criando um recorte bem mais negativo e conciso do que a riqueza que temos na versão “super expandida” de agora. Como foi com o álbum, os beatles também não gostaram muito do filme quando foi lançado — e ele foi meio que “abandonado” depois, nunca recebendo nenhum relançamento. Todo o material que deu origem a Get Back ficou engavetado num cofre dos Estúdios Apple (a empresa dos Beatles) por mais de cinquenta anos porque ninguém queria mexer muito com isso. Pelo menos até Peter Jackson aparecer e conseguir convencer os beatles ainda vivos e os familiares dos que faleceram a deixá-lo tentar editar todas as dezenas de horas de material.
Ver Get Back é humanizar e me aproximar dos músicos que ouvi a vida inteira, mas que até então eram menos humanos e mais figuras distantes. É rir com eles de suas palhaçadas, sentir que estou na sala fazendo graça junto. Nos momentos leves em que todos estão sorrindo e cantando, é um prazer indescritível. Não estou brincando quando digo que para mim é quase como um utópico “lugar feliz”, um ambiente tão surpreendentemente amigável que parece um pequeno e raro milagre que tenha brotado no espaço-tempo.
Ao mesmo tempo, insisto que parece também bastante humano, bastante próximo: qualquer encontro de amigos, qualquer ensaio de uma banda entre gente que se goste, pode parecer um pouco com Get Back (se as pessoas envolvidas forem legais).
8. Meu novo jeito de ouvir os Beatles
Eu ouvi Beatles a minha vida toda, mas tenho certeza que depois de assistir Get Back nunca mais vou ouvir do mesmo jeito.
Os Beatles que vou ter daqui pra frente serão bem diferentes daqueles que tinha antes porque agora deixaram de ser vozes despersonalizadas numa música e viraram pessoas de verdade. Quando numa gravação uma voz engraçadinha aparecer, vou conseguir imaginar os maneirismos e caretas que Lennon estava fazendo. Quando ouvir o Paul numa melodia, vou conseguir imaginar a cara dele sorrindo porque conseguiu o take certo pro seu perfeccionismo após mil tentativas.
Quando ouvir uma das raras músicas do George, vou conseguir entender o quanto importava para ele ter aquele espaço e se reafirmar diante dos outros membros da banda que eram mais velhos e que demoraram a lhe dar abertura e confiar em seu talento. E quando ouvir as músicas bestas do Ringo, vou conseguir imaginar aquele cara tranquilo com uma expressão serena no fundo de qualquer situação que possa ter acontecido durante a gravação.
Nas coletâneas, no projeto Anthology e nas edições deluxe dos álbuns dos Beatles, existem vários takes alternativos. São versões das músicas inacabadas, com erros, engasgadas, com piadas e comentários idiotas no meio. Acho que depois de Get Back vou acabar escutando cada vez mais desses Beatles das sessões de ensaio. Quero reviver o quanto for possível dessa sensação de assistir um dia de trabalho normal dos quatro, juntos tentando compor em alguma sala de Londres.
Eu saio de Get Back pensando no tempo do século vinte e especialmente dos anos sessenta, que parecem ao mesmo tempo tão simples, tão bonitos e tão problemáticos. Por um lado, é fascinante ver as roupas, os hábitos, as ruas de uma Londres nublada. Por outro, dá pra ver neles as limitações do tempo: a presença eterna dos muitos cigarros (não sei se tem alguma relação direta, mas o George Harrisson morreria décadas mais tarde por causa de um câncer no pulmão); o papel secundário de qualquer mulher (todos que trabalham na equipe são homens; mulheres, quando aparecem, são sempre esposas — e a única que sai um pouco do padrão de boa moça é justamente a Yoko) e a ausência de negros, tirando o Billy Preston (apelidado de “quinto beatle” por sua contribuição fundamental para o álbum existir, mas que nesse caso é a exceção que confirma a regra).
É muito desafiador tentar contextualizar esses anos sessenta, esse 1969: insisto em como os Beatles parecem profundamente modernos, mas algumas pessoas ao seu redor (principalmente os pedestres na rua no dia da apresentação do show no terraço, mas também algumas das pessoas que trabalham com eles na equipe) parecem caricaturalmente datadas, verdadeiros retratos vivos dos século vinte. É estranho olhar para aquela gente e pensar que os mais idosos tinham vivido para ver, numa só vida, guerras mundiais acontecendo em sua juventude e os Beatles cantando num terraço em sua velhice.
É estranho também pensar como os Beatles parecem tão irreversivelmente um fenômeno restrito aos “bons tempos”, algo que só poderia acontecer numa fase mais pacífica como aquela, mas algo que estava encaixado numa das raríssimas décadas um pouco (só um pouco) menos insanas do século vinte, que no geral foi um tempo bastante caótico. Sempre que penso nisso, não me parece coincidência que os Beatles tenham alcançado a fama logo depois da Crise dos Mísseis Cubanos, quando o mundo tinha acabado de quase se explodir inteiro e a Guerra Fria se reformulava em algo (um pouco) menos direto e apocalíptico, e terminado e perdido relevância com a chegada dos anos setenta, quando a Guerra do Vietnã escalava para seu pior momento e o público se conscientizava mais a respeito da gravidade do conflito.
Os tempos eram outros e os anos setenta seriam uma época menos bonita e menos ingênua em que faria menos sentido cantar silly love songs.
Também saio de Get Back levando muitas lições sobre processo criativo. É sempre inspirador ver gente apaixonada pelo que faz construindo algo com tanta competência. A obstinação, o desapego com o que já foi feito para tentar fazer algo melhor ainda, a experimentação, a diversão no processo, o esforço constante. Tudo isso é muito apaixonante pra quem gosta de fazer qualquer coisa. Eu nem músico sou, mas terminei de ver sentindo que tinha levado uma sacudida para voltar logo aos meus próprios projetos. É como se os Beatles, sendo gente como a gente agora, não dessem mais a desculpa do distanciamento num outro patamar sobre-humano para justificar não tentar.
Um dos motivos de eu ter me distanciado dos Beatles com os anos foi ter considerado que, já tendo escutado tanto deles, não existia mais nada de novo para justificar continuar ouvindo. Eu sentia ainda que ouvi-los era resgatar algo que era um pouco inocente, bobo e infantil demais. Nisso eu desconsiderava que os Beatles se separaram beirando os trinta anos de idade, mais velhos do que sou agora aos vinte e seis, e que na sua fase final eles não eram mais “só” a banda de adolescentes que tinham começado sendo. Eu nunca antes tinha parado para ler, interpretar e sentir as músicas dos Beatles com os olhos de um adulto.
São seis e meia da manhã agora, quando estou terminando esse texto aqui. Escrevi ele inteiro ouvindo os takes alternativos do álbum Let It Be. No momento em que escrevo esses últimos parágrafos, está tocando uma versão de Two Of Us, uma música que eu ouvi minha vida toda sem dar muita bola, mas que hoje está batendo diferente.
Agora, quando escuto consigo lembrar do processo para essa música ficar pronta, do Lennon e do McCartney cantando juntos no mesmo microfone. Do sorriso daquelas pessoas na sala do estúdio. Dos dias e dias de trabalho envolvendo tanta gente, tudo isso para no final produzir uma música de mais ou menos três minutos.
Certas coisas escutamos centenas de vezes, mas demoramos até conseguir entender e ouvir de verdade.
É tão único o sentimento de reencontrar algo que você viu a vida toda e redescobrir que agora pode ver de outro jeito, como algo completamente novo.
Eu nunca tinha percebido o quanto essa música é linda.
E olha que ainda nem é das melhores que eles fizeram.