Gilberto Freyre poderia ter nos livrado das fake news

Edson Amaro De Souza
Revista Subjetiva
Published in
4 min readJul 13, 2020

Começo recomendando uma aprazível leitura: “A Guerra dos Gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos, 1933- 1964”, de autoria do jornalista Gonçalo Júnior, publicado em 2004 pela Companhia das Letras.

O livro fala da batalha dos senhores Adolfo Aizen e Roberto Marinho, cada um na sua empresa, para enraizarem no Brasil o mercado das histórias em quadrinhos. Enquanto disputavam um com o outro a preferência do público, tinham que enfrentar juntos a oposição da Igreja e de educadores como Cecília Meirelles, que se opunham à leitura dessa modalidade artística pelas crianças.

A parte que nos interessa aqui — e eu cito de memória, pois não tenho o livro diante de mim, eu o li emprestado da Biblioteca Parque de Niterói, aquela mesma diante da Câmara Municipal — é a página que diz que Gilberto Freyre, o autor de “Casa Grande & Senzala”, tão combatido pelo movimento negro, propunha que as escolas ensinassem a Constituição para as crianças. Freyre foi um dos deputados que escreveram a Constituição de 1946 (aliás, morreu em 25 de julho de 1987, quando o Parlamento brasileiro preparava a Constituição de 1988, e foi saudado em discurso pelo então senador pernambucano Marco Maciel — esse discurso está arquivado em PDF no site do Senado sob o título “Gilberto Freyre: telúrico e universal) e pretendia que a escola brasileira ensinasse a Constituição às crianças e adolescentes. Para isso, pensava na criação de quadrinhos que seriam distribuídos aos estudantes.

Recentemente vi um vídeo em que Fábio Porchat conversava com Marcelo Freixo. Conta o ex-candidato do PSOL à prefeitura do Rio que, no dia seguinte ao primeiro turno, andando pela cidade, encontrou um velho que disse ter votado nele 24 horas antes mas que não votaria nele no segundo turno, pois recebera no celular uma gravação em que uma voz, muita semelhante à voz de Freixo, dizia que, quando ele fosse prefeito, os alunos das escolas municipais teriam o sexo trocado sem o consentimento dos pais. O Brasil é um país tão atrasado que as pessoas acreditam em mentiras desse calibre.

Eu digo sempre: se eu disser, para meus alunos de Ensino Médio, que Elizabeth II mandou matar as crianças de Edimburgo tal como Herodes mandou matar os meninos de Belém, poucos serão os que duvidarão. O povo brasileiro não faz a menor ideia do que seja Estado de Direito, divisão dos Poderes, Direitos Humanos, civilização! O Brasil é um país tão atrasado que católicos e protestantes se cansam virando as páginas da Bíblia de um lado para o outro para saber se, após o nascimento de Jesus, José penetrou Maria ou não, mas esse mesmo povo que debate com tanta animação a vida sexual de uma judia de 2 mil anos atrás é incapaz de abrir a Carta Magna para saber que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão por poder de lei, e não pode haver lei que disponha dessa maneira dos corpos das crianças — o povo brasileiro não consegue entender que um legislador possa exigir que as crianças sejam vacinadas mas não que elas sejam esterilizadas (a “mudança de sexo” as esterilizaria) pois a decisão de constituir família ou não é um direito humano, assegurada naquela carta tão difamada. Aliás, costumo dizer que há dois textos dos quais os brasileiros falam a todo momento sem tê-los lido: a Bíblia, que o povo diz que está toda certa sem tê-la lido (se contenta com as migalhas que padres e pastores deixam cair nas igrejas) e a Declaração dos Direitos Humanos, que o povo diz que está toda errada sem tê-la lido.

As fake news existem por causa de duas únicas categorias: gente de mau caráter que as produz e gente ignorante que as compartilha.

Toda essa discussão que se dá agora no Parlamento sobre as fake news resultará em nada se não houver educação para a cidadania. E daí que o Facebook esteja censurando fake news sobre a covid19? E daí que se queira desenvolver tecnologias que as identifiquem e as reprimem? Elas se espalharão por meios artesanais como sempre fizeram antes da internet e do celular.

Dou um exemplo: em 2004, em São Gonçalo, RJ, todos acreditavam que Graça Mattos venceria a eleição no primeiro turno. Coisa de 48 horas antes das eleições, apareceu uma publicação em papel jornal, de apenas 4 páginas (uma única folha de jornal dobrada), com o título “Folha Espírita” (um jornal que ninguém jamais tinha visto antes e nem voltou a ver) com uma montagem na primeira página: alguém pegou a fotografia de uma mãe de santo e colocou nela o rosto de Graça Mattos. O falso jornal não falava de mais nada, apenas negava que a candidata (que jamais teve nem terá meu voto, mas a minha decisão nada tem a ver com religião e sim com a sua trajetória política) fosse evangélica (aparecia na TV acompanhada de pastores e cantores gospel) e sim candomblecista. O povo deixou de elegê-la por preconceito religioso. Se os oponentes tivessem encontrado alguma prova de corrupção contra ela, será que ela teria perdido a eleição? Será que, se fosse provado publicamente que ela e seu marido, ex-prefeito, roubaram dinheiro público, isso a derrotaria como o preconceito religioso derrotou?

O que torna possível que fake news decidam uma eleição é apenas a falta de educação política, a falta de educação humanística, a falta de educação científica, os preconceitos todos que a má educação aduba — é muito fácil espalhar mentiras contra comunistas, gays, candomblecistas, ateus, maçons e minorias várias.

Ah, voltando a Gilberto Freyre. Quando o ex-jogador Romário (em quem não votei) era senador, ele fez um projeto de lei para que a Constituição fosse ensinada nas escolas. Liguei para o gabinete dele e citei a ideia de Gilberto Freyre.

Pela segunda vez, o Brasil perdeu a oportunidade de ensinar a Constituição à juventude, para a alegria dos que se valem da ignorância.

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