Hamilton, LeBron, Neymar e a história acontecendo

Rafael Moreno
Revista Subjetiva
Published in
9 min readOct 17, 2020
Direitos de Imagem: Bryn Lennon/Getty Images

O mês de outubro me reservou três acontecimentos que fizeram de mim um privilegiado por ver a história acontecendo diante dos meus olhos:

  • O L.A Lakers venceram a temporada 2019/2020, após um jejum de 10 anos, tendo a liderança do time pela nome dela e, em quadra, pelo Lebron King James, ou o Papai LeBron, como o narrador Rômulo Mendonça o batizou.
  • Hamilton igualou as 91 vitórias do alemão Schumacher. Em tempos, ele ultrapassará a marca, se tornando o mais vitorioso piloto da história da Fórmula 1.
  • Neymar Jr. anotou três gols na vitória da seleção contra a Peru, pelas Eliminatórias da Copa. Assim, se tornou o segundo maior artilheiro da história da seleção brasileira, tendo como único jogador a sua frente, o Rei Pelé. Com o adendo na grande possibilidade de superá-lo na artilharia.

É ou não é a história acontecendo diante os nossos olhos?

Bem, pra boa parte da galera, não.

Em meio a uma realidade de pós verdade e autoverdade (termo desenvolvido pela colunista do El País, Eliana Brum), os fatos e dados exatos perdem a vez para o subjetivo.

Aliás, deixo abaixo belíssimo artigo dela:

Nesse ponto, a memória afetiva conta muito e, com ela, temos uma confusão rolando entre memória e história. No vídeo Nerdologia — Antigamente é que era bom!, Filipe Figueiredo explica um pouco sobre a diferença entre memória histórica x retrospectiva idílica.

Reforçando alguns pontos discutidos no vídeo:

Memória: uma visão do passado que é guiada pela visão atual de uma pessoa ou de um grupo. A memória é seletiva. Ela tenta sacralizar o passado e maquiar a história, construindo heróis e vilões, glórias e tragédias.

História: uma análise sobre a realidade orientada por um inquérito metodológico. Busca a compreensão, que muitas vezes destroem os mitos sobre a memória.

A memória é centrada especialmente no indivíduo, na sua vida e definida e limitada por suas experiências. A sensação de que somos o protagonista do filme da nossa vida ou a sua música preferida é a melhor do mundo. Onde reage-se surpreso quando alguém discorda sobre ela.

São vieses cognitivos muito comuns na formação de memórias e estudados nos campos da história. Esse comportamento emotivo tbm costuma motivar ou justificar a idealização que muitas vezes fazemos do nosso passado, seja da nossa vida ou da cultura da sociedade como um todo.

Outros pontos também citados dizem sobre o que consumimos em nossa juventude, período o qual nos desenvolvemos física e emocionalmente, onde cada registro passa a ter um caráter afetivo, gerando a sensação de familiaridade.

Assim, ao lembrarmos daquele jogador de basquete, futebol ou piloto de fórmula 1, nos remete a um período dentro da nossa memória onde, ligado a sensações, nos sentimos bem.

Ter uma novidade, alguém ou alguma coisa dizendo que há algo melhor do que cultivamos, nos leva para um horizonte desconhecido às nossas memórias. O novo assusta e, institivamente, buscamos somente o lugar seguro ao invés de nos arriscarmos.

Mais ou menos quando você passa por todo o Netflix pra voltar e assistir mais um episódio de Friends.

Repercussão

Note que, em toda a repercussão, o que é mais comumente noticiado, não é o feito histórico em si, mas sim a busca pela reafirmação de que aquilo que foi vivido foi sim relevante, diferente do que essa geração se propõe.

Aqui não me refiro ao esquecimento. Longe disso. Daqui a cem anos, nós seremos as lembranças de alguma geração. A história deve ser preservada e valorizada sim. Mas, novamente, não podemos confundir a história com a memória e fecharmos os olhos para os fatos e nos refugiarmos nas cavernas das subjetividades.

Olha só que interessante:

Um dia após o LeBron James conquistar o título da NBA com o Los Angeles Lakers, temos a seguinte reportagem:

Quando o Neymar Jr. se tornou o segundo maior artilheiro da seleção brasileira, bem, tivemos as seguintes discussões:

Hamilton igualou o recorde de Schumacher e, olha só:

Claro, discussões subjetivas e emocionadas rendem programas inteiros de debates. Notícias negativas, caça cliques, rendem bem mais acessos do que notícias positivas. Mas me pergunto: até quando boa parte de nós manterá seus olhos fechados para a história acontecendo?

Pra se ter uma noção do quão absurdo é, no caso do Neymar Jr., há quem diga que seus gols não foram “tão gols assim”, uma vez que, se eles apelassem para o fato de não ter conquistado uma Copa do Mundo, implicaria em dizer que o Zico, Sócrates, Júnior, Falcão, também não são tão bons quanto acham que o Neymar Jr. não é.

Também não podemos deixar de lado a parte social/política, mesmo que alguns profissionais da mídia digam que esporte e política não se misturam.

Até porque, incomoda um piloto negro dominar um esporte totalmente elitizado e predominante das, até então, conquistas dos pilotos brancos. Tendo o ex-chefe da Fórmula 1 criticando a maneira como age e se veste, uma vez que não da para se rebater os títulos.

Há de se notar a força que o LeBron tem em seu ativismo político, em ano de eleições, onde aproveita da grande voz que conquistou, para militar sobre o direito ao voto e o direito a vida da população negra.

Mesmo Neymar Jr., contido e reservado quanto a questões sociais, sempre foi cobrado por uma formação que nunca teve (e nem lhe proporcionaram) e, vejam só, após sofrer um ato de racismo, mesmo com imagens mostrando a ofensa, toma um duro golpe na França, onde a liga se negou a identificar tal ação. Seu primeiro gol após o episódio foi com o punho erguido.

Sempre há uma má vontade em todos os casos. Racionais já cantava sobre isso em A Vida é um Desafio.

O acesso

Aqui entra um ponto crucial. A diferença de “antigamente” para o hoje se dá pelo acesso que passamos a ter.

Lembra quando seu pai ou avô contava sobre como acompanhava os jogos? Radinho na mão e a reprise dos melhores momentos na madrugada. Agora vem a parte interessante: o rádio sempre teve aquela magia de nos fazer visualizar aquilo que escutávamos. Narradores, comentaristas atiçam nossa imaginação, trazem vida ao jogo, com seus heróis e vilões.

Porém, não podemos deixar que tudo que escutávamos era enviesado pelo narrador. Ali não estava apenas uma narração do jogo. O narrador e o comentarista mostravam o ponto de vista deles em relação aos jogos. Ora, se o rádio é meu único acesso e, se eles estão falando que o Zezinho tá bem e o Luizinho tá mal, quem sou eu para discordar?

Mais interessante ainda é notarmos quando futebol brasileiro era muito melhor nos anos 80, 90 e comecinho de 2.000. Hoje a gente assiste a Champions League durante a tarde e o Campeonato Brasileiro a noite e fica óbvio a diferença técnica entre a liga de futebol mais competitiva do mundo e o nosso campeonato brasileiro.

Ou seja, será que o nosso futebol brasileiro era tão bom assim ou nós é que não tínhamos o acesso que temos hoje a todas as ligas do mundo para termos um parâmetro de qualidade?

Ou vocês não se lembram da lenda urbana “Edmundo foi o melhor jogador do mundo em 97”?

Hoje também temos os mesmos acessos daqueles que nos apresentam os esportes. Temos a nossa visão, construção, análise e a opinião de quem nos transmite deixou de ser a única e verdadeira. Hoje temos parâmetro, podemos fazer um viés de comparação.

Talvez por isso, a primeira reação que se tem quando algo novo surge para fazer história é levantar a guarda e partir para o emocional, dizer que os tempos eram outros, melhores. Mas lembre-se da diferença entre história e memória.

Quer um fato interessante? Lembra quando diziam que, nos anos 80, o público nos estádios eram, sempre ou quase sempre, de cem mil torcedores?

Então, de acordo com o Futdados, nossa média sempre foi baixa. Aqueles estádios lotados, claro que lotavam, mas em jogos específicos. Finais ou fases finais de campeonatos. Como sempre foi.

A gente nunca vai entender como melhorar o público nos estádios enquanto não admitirmos ou entendermos que, historicamente, ele sempre foi baixo. Caso contrário, vejam só, de uma maneira ou outra alcançamos a média da tão sonhada década de oitenta, não é mesmo?

A evolução

Muita coisa ao longo da nossa história mudou, evoluiu e sempre para melhor. Pode ser até nostálgico lembrarmos das nossas idas as locadoras, mas não podemos negar que hoje, com o streaming, está muito melhor.

Isso porque nos lembramos apenas do que nos agrada. Ou vai me dizer que era maneiro ir para uma locadora e não poder alugar um filme porque o mesmo já havia sido alugado?

E os nossos mp3? Pilhas acabando, um som mais ou menos e, para ir a uma determinada música, tínhamos que passar por pastas e pastas, música por música.

O mesmo vale para o esporte. Ele melhorou. E muito. Temos atletas do mais alto nível físico e mental. Temos em nossa disposição uma maior gama tecnológica, que extrai cada vez mais, o máximo que o jogo permite. Softwares para análise de desempenho, acesso a estudos, conceitos e discussões sobre o jogo ou a corrida.

Por falar nas corridas, creio que não há discussão, certo? Esse lance de “hoje o carro é que vence” rolava desde que o mundo é mundo. Só observar a queda de óbitos em corridas ao longo das décadas.

O esporte está sempre em evolução, carregando com ele uma frase tão antiga quanto verdadeira: recordes existem para serem quebrados.

No artigo escrito por Flávio Gomes, a respeito do maior piloto de todos os tempos, Lewis Hamilton, ele traz uma boa síntese de tudo que rola sempre quando temos um choque geracional e/ou a negação dos fatos.

Detém o maior número de vitórias, pole positions, maior número de pódios, maior número de pontos em uma temporada e, futuramente, se tornará o piloto com maior número de títulos.

Hamilton é sim o maior de todos os tempos. Você pode ter o seu “melhor piloto de todos os tempos”, mas negar que, por tudo que apresenta, por todos os recordes quebrados, pelas marcas que ainda estabelecerá, é forçar a barra para o irracional e não entender o que tá acontecendo.

Você tem todo o direito em discordar de mim. Dizer que o Neymar Jr. é o Neymarketing. Que ele não joga nem 10% do que tantos e tantos jogadores da seleção brasileira jogaram.

Mas negar o fato de que ele é o maior artilheiro brasileiro da Champions League (ultrapassando nomes como Ronaldo, Rivaldo, Kaká), campeão de praticamente tudo que disputou, dos gols feitos em todas as finais, do ESPN com sua tradicional Bola de Prata, em 2012, tira-lo da disputa do melhor do brasileirão por considerá-lo tão superior, hors concours (feito concedido apenas ao Pelé), de, com apenas 28 anos, ser o segundo maior artilheiro da seleção brasileira, é querer que sua opinião sobreponha os fatos.

Lebron James se tornou o atleta com mais vitórias em playoffs da NBA. Também é o maior cestinha dos playoffs, recordista de triplos-duplos em finais, segundo maior pontuador em finais, terceiro maior pontuador da história da NBA.

A história tá acontecendo. Recordes estão sendo quebrados. A história está elegendo os maiores e somos privilegiados acompanharmos.

Quer você queira, quer não.

Não custa lembrar, é claro que você pode ter o “seu melhor/maior de todos os tempos”, não tem problema algum. Só não deixe que isso afete a sua percepção do que estamos vendo hoje.

Atletas como eles não aparecem assim de uma hora para outra. Por isso aproveite, se deleite, divirta-se, sinta-se privilegiado por acompanha-los.

A história está acontecendo.

Escolha por participar dela.

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