Hermeticamente fechada

Ana Paula Vilela
Revista Subjetiva
Published in
3 min readApr 12, 2021
Photo by Noah Buscher on Unsplash

No meu tempo, a pandemia me pesou.

Demorou um ano para bater aqui o que o mundo, de alguma forma, achou que já estaria ajustado. Não me entenda mal, não estive alienada por desinformação, e sim por opção. Talvez até por sobrevivência. Produzi, estudei, mudei de emprego, comecei um relacionamento, decorei o apartamento, fiz atividade física, terapia e até cultivei uma horta. Um ano e tanto. Mas agora, meio que a contragosto, não consigo mais me convencer a contar aqui essas resenhas.

Todas as prosas me parecem vazias e distópicas se não flertarem, pelo menos um pouco, com a narrativa que grita das janelas, escorre das panelas, pula das telas. E para falar a verdade, hoje pouco me importa tudo que você cria ou criou — a não ser é claro, que seja a vacina. Mas também, não quero furar a sua bolha com mais histórias como essas, em que basta ligar a TV para se asfixiar. Já eu? Honestamente, finjo que nem sei quantos morrem, quantas famílias foram afetadas, quantos amores, desamores, risadas e vidas ficaram para trás.

Mas é inevitável.

O Brasil cheira morte.

Tento disfarçar. Acendo velas, incensos e, quando menos espero, me invade um cheiro de azedo. Mas se nem como carne, então, de onde vem esse fedor de bicho podre? Não deve ser da minha cozinha. Fecho as janelas. Para aliviar, faço a casa cheirar bolo, café, mexerica. Construo a minha realidade enquanto reclamo de não poder sair, beber com os amigos, abraçar a família, ir ao parque, a praia, viajar nas férias. Um ano arraigada nesses problemas que, agora que deixei a rajada de vento entrar, parecem miúdos.

E são.

Porque o Brasil, o Brasil cheira morte dentro e fora das telas.

Cheira fome, desespero, desesperança.

O Brasil da vida real tá cagando para minha crise de ansiedade. E não deveria estar?

Pouco importa que tá nascendo uma folha nova na orquídea ou que o cacto se recupera da cochonilha. Que acertei a moagem do café hoje cedo e que, depois de reclamar de um dia de trabalho, abri minha cerveja e olhei para a lua. Que o número da planilha não bateu, que a personagem não tem um arco dramático claro, que João foi um escroto. Que eu meditei, maratonei os filmes do Oscar, pedi pizza e encomendei vinho na promoção. Que arrumei meu armário e percebi que tenho várias roupas inúteis. Quantos e quais livros li, com quem falei e por onde ando meio ausente.

Ausente mesmo, andei da realidade. Ou, pelo menos, tentei.

Me manter fora do mundo, das covas, da fome, das filas, dos mais de trezentos mil, da falta de oxigênio que, convenhamos, enquanto falta nos hospitais me sobra aqui nessa bolha hermeticamente fechada.

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