História dos Toques

O beijo como crítica política é homofóbico?

Luan Oliveira
Revista Subjetiva
4 min readMay 2, 2019

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Como de praxe, foi anunciado no início do mês a próxima capa da revista Piauí. A revista, se não for a líder em vendas e alcance, com toda certeza o é em influência. Ela é discutida em aulas de jornalismo e os principais nomes da imprensa e política nacional dedicam seu precioso tempo às edições avantajadas da publicação. Contudo, na rede social onde foi anunciada a nova capa, um debate corria nos comentários: o arquétipo do beijo está datado?

Reprodução // Fonte desconhecida

É uma imagem clássica: duas figuras públicas antagônicas — ou comungadas ao nível da obscenidade — se beijando. “Mein Gott, hilf mir, diese tödliche Liebe zu überleben”, esse é o nome em alemão da obra do artista russo radicado na Alemanha Dmitri Wrubel. Traduzida, significaria “Meu Deus, me ajude a sobreviver a esse amor mortal”. Se trata de um painel representando um dos últimos estadistas soviéticos, Leonid Brejnev, e um dos premiês da Alemanha Oriental, Erich Honecker, se beijando apaixonadamente.

Se trata de uma crítica à relação obscena e de submissão mantida entre a União Soviética e seu estado-satélite ao oeste, a Alemanha Oriental. O beijo de fato ocorreu, conhecido como beijo fraterno soviético. A arte imitou a vida, e se tornou um marco na história moderna recente. A pintura segue no muro de Berlim até os dias de hoje e suas diversas versões continuam a pipocar mundo afora.

Donald Trump já beijou Vladmir Putin e Kim Jong-un. E para destronar de vez a pecha de homofóbica do arquétipo: Theresa May já beijou seu antecessor histórico — Winston Churchill — em uma clara alusão à natureza estadista e teatral da primeira-ministra, que parece tentar emular em si a imagem do indivíduo que liderou o Ocidente contra os nazistas.

Thereza May beija Winston Churchill // Reprodução: Youtube

A campanha publicitária UnHate da italiana Benetton criou imagens de diversos lideres mundiais que demonstram desafeto se beijando — e não foi exclusividade de casais homoafetivos. O objetivo da campanha era, além de conseguir buzz para a marca, apontar a fragilidade das disputas do mundo político através do bom e velho Photoshop.

Sim, olhando de hoje podemos inferir que o arquétipo do beijo se trata de uma criação que confiava na desconstrução da masculinidade dos envolvidos para zomba-los — principalmente se tratando de um período onde figuras de influência do sexo feminino eram raras. Mas anacronismos devem ser evitados sempre. Tudo no mundo evolui e deixa seus significados defasados para trás.

O beijo é um ato de forte intimidade — talvez a forma mais pujante de intimidade e paixão que pode ser reproduzida em público sem configurar claro atentado ao pudor. Quando duas figuras claramente antagônicas — ou fortemente alinhadas — aparecem dando um beijo em uma charge, independente de seus sexos, a interpretação é única e imediata.

Divulgação // Revista Piauí

A capa da revista Piauí, onde Olavo de Carvalho beija Jair Bolsonaro com toda ternura e paixão, nos arremata inegavelmente a todo o histórico de influencia obscena do astrólogo-transformado-em-filósofo no governo federal nos últimos meses. Indicações a cargos federais, demissões e todo tipo de movimentações são feitas pelo guru à distância de um Tweet. Assim como no clássico alemão, Olavo é cidadão americano — interferindo fortemente em um outro país, onde também possui cidadania.

Sim, a Piauí tem um histórico de usar o beijo em suas capas; Michel Temer já beijou Eduardo Cunha, Vladmir Putin beijou Edward Snowden. Também já houveram políticos nus — para emular as diversas charges do Rei Nu que surgiram durante a Revolução Francesa que demonstravam que, por trás de toda a pompa de capas ou ternos, todos somos homens fracos e nus.

A Piauí não inventou o beijo, nem sua ressignificação moderna — onde a relação entre duas figuras públicas é questionada. Existem formas de arte que prosperam para todo o sempre, devido a sua forma universal e atemporal. Esse é o caso do Beijo, assim como do Rei Nú, e diversos outros arquétipos de charge que marcaram nossa história — como a evolução invertida ou o elefante na sala — e seguem se repetindo.

Tentar enxergar uma invenção antiga como algo problemático é válido — afinal, história da arte é uma matéria e um objeto de estudo. Mas não analisar juntamente a sua evolução, suas diversas ressignificações e questionar se um objeto realmente depende de um aspecto problemático para prosperar antes de determinar sua abolição é virar as costas para a história, e toda a cultura que a civilização humana construiu em sua marcha.

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Luan Oliveira
Revista Subjetiva

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.