Ignorância Seletiva

Gabriel Martins
Revista Subjetiva
Published in
3 min readMar 15, 2021
Foto de Anete Lusina no Pexels

Quando Cypher, interpretado pelo ator Joe Pantoliano, decide abandonar a missão da nave de Morpheus na luta da humanidade contra a robotização e domínio das máquinas em Matrix, ele sela seu acordo com o inimigo, simbolizado pelo Mr. Smith, num restaurante movimentado em uma metrópole cheia demais para alguém notar sua presença. O acordo previa a reabilitação do traidor ao mundo virtual elaborado pelas máquinas e restauração de seu estado de suspensão da realidadecruel demais para ser vivida de olhos bem abertos. Sentado ali, Cypher corta e degusta um pedaço generoso de um filé preparado um pouco além do ponto ideal, pro meu gosto pelo menos, e diz: “a ignorância é uma benção”.

A ignorância aplicada nesse contexto, apesar de metaforizar o estado de inércia que o ser humano médio se encontra, no entanto, não responde uma pergunta que eu sempre me fiz, todas as vezes que assisti ao filme: esse contrato é vitalício?

Essa pergunta tem rondado minha cabeça com mais frequência nos últimos anos desde a estréia de Matrix, em 1999. Talvez seja porque recentemente a latência do mundo digital esteja mais alta. A colateralidade de viver uma vida virtual sem notar que a realidade envolve muito mais coisas que os stories do instagram mostram. Essa conversa frequente de que nossa dependência do mundo externo está sustentada em fios frágeis de pouco contato e muita informação absorvida a qualquer critério. Ou talvez seja porque ultimamente, eu tenho feito um esforço notório e declarado em direção a ignorância.

Mais e mais, eu me pego revisando contratos invisíveis do que quero ou não quero ter acesso enquanto ando pelas ruas virtuais das redes sociais. Chamo todos esses contratos de “coisas que sei, mas que não vi”. E eu invisto nesse acordo silencioso com a sensação de que ele é uma espécie de capa invisível de proteção. Afinal de contas, qual o benefício de assistir George Floyd ser asfixiado enquanto chama pela mãe? O que eu ganho em ver Dandara apanhar repetidas vezes com o pouco de consciência que lhe restava? Qual a vantagem de assistir a senhora Mirtes Renata de Souza reviver todo seu sofrimento de encontrar o menino Miguel já sem vida enquanto ela relata para a televisão?

Soa como desesperança, né? Em algum ponto, Cypher, que lutava contra a Matrix, desistiu de insistir, confrontar e enfrentar. Na ficção, na metáfora, na literatura, fugir é uma opção: tentadora para uns, covarde para outros tantos, coerente e justificada para quem está cogitando sua possibilidade. Já aqui, no lado de fora, no mundo real por mais líquido que isso seja — , a verdade mesmo é que fugir não escapa de ninguém a realidade. Aquela mesma, cruel demais para ser vivida de olhos bem abertos. Por aqui, não existe essa história de pílula azul ou vermelha — a única coisa que temos é o gosto amargo de remédio.

E se nada vai mudar mesmo; tá tudo bem eu somente saber, sem precisar ver?
A indignação ou revolta terá um valor diferente porque eu assisti o que sempre soube?
Será possível ainda mudar uma realidade que não precisa mais de exemplos práticos?
A ignorância seletiva é mesmo um mecanismo de proteção eficaz ou um pequeno desvio para enganar minha (in)disposição?
Será que é possível ficar confortável e satisfeito se escolher a pílula azul?

E se chamarmos o que soa como desesperança de uma linha mais intensa de resistência? Afinal de contas, os caminhos que nossa mente percorre para que a gente fique de boa com tudo que acontece definitivamente não são os mesmos que ela escolhe para conseguir encontrar o que incomoda, faz mal e maltrata. E a gente só percebe isso quando está cansado de andar, andar, andar e não chegar no esperado estado de espírito onde tudo que a gente sabe, porém escolhe não ver não nos atinge mais.

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