Indústria Americana em Vertigem

A falsa polêmica em torno da ideia de isenção nos documentários indicados ao Oscar

Helton Lucinda Ribeiro
Revista Subjetiva
4 min readFeb 10, 2020

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A cineasta Petra Costa fez um filme mais memorialístico do que documental (Divulgação)

Anunciada a indicação ao Oscar de melhor documentário de longa-metragem, as críticas a Democracia em Vertigem, de Petra Costa, não tardaram. Uma das mais recentes foi feita por Pedro Bial: “menina querendo dizer para a mamãe que ela fez tudo direitinho”.

O filme brasileiro também vem sendo comparado a Indústria Americana, outro concorrente ao Oscar, produzido por Michelle e Barack Obama. Este, sim, um documentário não maniqueísta, segundo os críticos e detratores de Petra Costa. Será?

Indústria Americana é um bom filme, reconheçamos. Também está acessível ao público brasileiro pela Netflix. Os demais eu não vi. Sei que Democracia em Vertigem é um azarão na disputa. Mas é preciso fazer justiça à cineasta brasileira.

O filme de Petra Costa é mais memorialístico do que documental. E isso está longe de ser um demérito. Ela faz um relato pessoal honesto, principalmente por não fingir isenção. Há defeitos no filme, é claro. Mas trata-se da verdade do relato, da visão de mundo da autora, com a qual se pode debater.

A crítica ao maniqueísmo do documentário se apoia em três pressupostos: não houve golpe em 2016; não houve uma escalada fascista na sequência; o bolsonarismo e o lulismo são equivalentes com sinal contrário.

Ou seja, a narrativa que desqualifica o filme é altamente ideológica, pois só uma operação puramente ideológica pode estabelecer equivalência entre petistas e fascistas e menosprezar como maniqueísta quem aponta a diferença.

Revi o documentário após as revelações da Vaza Jato, a série de reportagens do Intercept Brasil a partir de mensagens trocadas entre os promotores da operação Lava Jato. À luz dessas revelações, o Golpe de 2016 não é apenas uma interpretação ou uma versão, é um fato.

Entre seus muitos méritos, o filme traz a autocrítica que tanto cobram do PT, feita por Gilberto Carvalho em entrevista à cineasta:

A gente passou a depender demais da governabilidade apenas com o Congresso. Achamos que podíamos ser amigos dos grandes naturalmente, que o financiamento de campanha era natural. Não fizemos a reforma política, que era fundamental para acabar com essa desgraça do financiamento por empresas, que é a mãe da corrupção (…) O partido começou a fazer o que os outros faziam.

Indústria Americana faz melhor? Não é maniqueísta? Gostaria de saber como o público americano reage ao filme. Talvez seja muito fácil projetar o inimigo nos chineses, e não no capitalismo. A cultura empresarial autoritária e o pendor escravocrata fazem da companhia Fuyao Glass America o vilão perfeito, o alienígena que vem impor sofrimento a uma harmoniosa comunidade do Meio Oeste americano. Todos já vimos esse filme.

Michelle e Barack Obama financiaram o filme de Steven Bognar e Julia Reichert (Chuck Kennedy/Netflix)

Mas o sofrimento dessa comunidade não começa com a chegada da Fuyao, e, sim, com o fechamento da fábrica da General Motors e a perda de dez mil empregos. A fragilidade dos trabalhadores perante o capitalismo selvagem chinês também tem mais a ver com a estrutura sindical americana.

Há um diálogo-chave logo no começo do filme. Um representante americano da Fuyao faz uma apresentação e alguém na plateia pergunta: “Os trabalhadores aqui são sindicalizados?” Ele responde: “Não são. E preferimos assim.”

Licença para uma digressão: talvez os chineses se saíssem melhor se assistissem Fábrica de Loucuras (1986), comédia com Michael Keaton sobre a compra de uma fábrica de automóveis americana por uma empresa japonesa. Executivos da Toyota assistiram. A arte e a vida se retroalimentam.

Voltando a Indústria Americana: o filme mostra a tentativa de organização dos trabalhadores e o esforço despudorado dos patrões para impedir qualquer atividade sindical. É emocionante. Toda a nossa empatia é canalizada para os americanos. É maniqueísmo ou é a realidade daquela fábrica?

Quando uma consultoria é contratada para fazer a cabeça dos trabalhadores contra o sindicato, o filme traz um dado interessante: consultorias antissindicalização vêm crescendo nos EUA desde os anos 1970, enquanto a média salarial e as taxas de sindicalização vêm caindo.

Essa é a forma como o capitalismo se estruturou nos Estados Unidos, e esse problema não foi criado pela China. É preciso saber ler nas entrelinhas para não cair na fácil xenofobia da qual se alimentam fascistas como Donald Trump.

O que seria chamado de maniqueísmo em outra circunstância é apresentado como isenção, afinal, todos foram ouvidos, empregados e patrões, americanos e chineses. É a velha desculpa de “ouvir os dois lados”, que faz muitos jornalistas se sentirem com autoridade moral para criticar o “ativismo” de Petra Costa ou de Glenn Greenwald.

Democracia em Vertigem não é favorito, evidentemente. Mas se Petra Costa vencesse, seus detratores diriam que foi uma escolha política. E qual escolha não é política?

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