"Joga pedra na Geni"? Não!

Uma observação participante do bloco feminista "Mulheres Rodadas" no carnaval de 2018.

Yasmin Curzi
Revista Subjetiva
6 min readFeb 15, 2018

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Nota às leitoras: muita coisa aconteceu nesse dia e muitas emoções foram ativadas em muitos momentos. Essa é uma tentativa muito pequena de contar um pouco o que vi e senti, mas é difícil colocar tudo em palavras. Provavelmente esse texto será editado algumas vezes e ficará diferente da versão que ainda será publicada no blog da Stop Street Harassment.

"Márcia Benevides. Presente."

Foi com lágrimas que o bloco de carnaval "Mulheres Rodadas" começou o seu cortejo nesta quarta-feira de cinzas, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Em setembro do ano passado, uma de suas integrantes foi cruelmente assassinada por seu ex-parceiro, de quem se separava. Ela havia procurado as oficinas do bloco — que acontecem ao longo do ano, em preparação para o carnaval — justamente para lidar com o processo de ruptura. Encontrou reconforto e força para seguir adiante. A primeira música do cortejo foi "Folhas Secas" de autoria de Nelson Cavaquinho, da Estação Primeira da Mangueira, porque Márcia fazia parte dessa escola. "Mataram uma de nós" disse Renata Rodrigues, uma das idealizadoras do bloco. Uma membra do grupo que deveria estar livre e desfilando também neste ano, mas que teve a existência encerrada por causa da violência machista.

A banda, integrada principalmente por mulheres, seguiu o cortejo tocando clássicos do samba e da música popular como "Marinheiro só" de Clementina de Jesus, "Alguém me avisou" de Dona Ivone Lara, "Ô abre alas" de Chiquinha Gonzaga, "Lenda das Sereias" de Marisa Monte, mas também inseriu funk ao repertório, fazendo o público gritar pelas ruas "eu não espero o carnaval chegar para ser vadia", versos de Pablo Vittar e "Hoje" da MC Ludmilla. Empunhavam estandartes dessas mulheres cânones da música brasileira, mas também de Nina Simone.

Marchavam a "ala das bamboeiras", mulheres que rodam e dançam com bambolês, seguida pela "ala das pernaltas", sete mulheres e uma menina de uns poucos 10 anos de idade, fantasiadas e usando pernas-de-pau, e, por fim, a banda. Ao redor, centenas de foliões, mulheres, homens e crianças, pulavam, gritavam e cantavam em conjunto.

Créditos: Ana Clara Jansen

O cortejo seguiu do Largo do Machado ao Aterro, onde uma performance incrível foi realizada, ao som de "Geni e o Zepelim" de Chico Buarque. A ala das pernaltas empunhou cartazes denunciando o feminícidio e a violência machista contra mulheres. Podia-se ler que o Brasil é o quinto país onde mais mulheres são mortas por sua condição de gênero (crimes motivados por misoginia, como violência doméstica e violência sexual), que as mulheres negras ainda são as maiores vítimas de violência de gênero no país, além de apelos para que mulheres denunciem agressões sofridas.

Simularam então o funeral de uma das pernaltas e jogaram flores sobre seu corpo. Enquanto a banda tocava "Joga pedra na Geni!/ Joga bosta na Geni!/ Ela é feita pra apanhar!/ Ela é boa de cuspir!/ Ela dá pra qualquer um!/ Maldita Geni”, o público gritava "Não!". Exemplo claro de como a disputa por hegemonia cultural pode ser travada no campo da arte, trazendo a lembrança de que é intolerável que mulheres sejam violentadas porque querem ser livres.

Os partidos conservadores definem todos esses movimentos como "ideologia de gênero". Partem da ideia de que colocar em questão as múltiplas formas de se naturalizar a subordinação feminina e a dominação masculina é mexer numa "ordem natural" das coisas. Usam esta frase como lema e a transformam em um grande espantalho, capaz de camuflar as reais intenções: programas econômicos de setores religiosos, alianças com capital privado e apoios a retrocessos trabalhistas. Essa direita conservadora não quer debater papeis de gênero e é geralmente extremamente reacionária às transformações sociais. Quase como que desejando uma estrutura feudal — de fato colocaram uma figura simulando Judith Butler em uma "fogueira", em um "ato inquisitorial", a chamando de bruxa — , quer cristalizar o "lugar das mulheres" em torno de um ideal de feminilidade e subalternização. Também não admite a diversidade dos afetos, nem enxerga a masculinidade tóxica como real causadora da violência, culpabilizando as vítimas pelos ataques sofridos.

Créditos: Ana Clara Jansen

Em seu livro “Calibã e a Bruxa”, Silvia Federici aborda a transição do feudalismo para o capitalismo a partir de uma perspectiva de gênero, apontando que foi imprescindível para a acumulação capitalista fazer com que mulheres ficassem circunscritas aos espaços privados, com o trabalho doméstico sendo não-remunerado, além do controle estatal das funções reprodutivas. O mito da bruxaria foi fundamental para legitimar o genocídio de mulheres e o controle dos corpos, solidificando essa estrutura social. A autonomia reprodutiva das mulheres seria, justamente, o maior de todos os crimes — não à toa, as bruxas eram geralmente representadas por mulheres que não dedicavam suas vidas ao âmbito doméstico e que rompiam com o ideário de subalternização feminina de alguma forma. Para os conservadores de hoje, assim como os inquisidores da Idade Média, é um atentado contra a ordem natural das coisas que os papeis de gênero sejam questionados. Sempre com intenções políticas em curso. Federici também mostra que o capitalismo é responsável por produzir esses momentos de retrocesso intelectual para manter a sua hegemonia. O momento que vivemos, de intensa difusão do discurso conservador na esfer da moral, é uma forma encontrada por certos segmentos da elite política para se manterem no poder em momentos de crise econômica.

Mas sabemos também que certo incômodo está sendo produzido quando vemos o reacionarismo pulsando. Se o status quo não estivesse sendo balançado, não haveria necessidade de organização de tantos atos obscuros. Há, portanto, espaço para que mulheres se infiltrem nas "brechas" culturais e disputem o discurso hegemônico — denunciando, questionando e falando sobre autonomia corporal, sobre violência, sobre seus lugares nas instituições públicas e no mercado de trabalho. E são múltiplas as iniciativas de mulheres para colocar toda essa estrutura em xeque. Trazer esse debate para as ruas faz com que o carnaval seja mais uma forma de conscientizar pessoas.

Apesar de atravessarmos os mesmos problemas de sempre — imersos em uma cultura machista de violência pandêmica contra mulheres, não foram poucos também os casos de assédios, abusos e violências — , o carnaval 2018 foi marcado por atos políticos, campanhas anti-assédio e manifestações de sororidade. Outro destaque foi a organização "Mete a Colher" que, em parceria com a organização "Meu Recife", elaborou o relatório "Aconteceu no Carnaval", a partir do uso dessa hashtag para promover as denúncias de violências sofridas durante os festejos e cobrar políticas públicas efetivas para o enfrentamento do problema. Renata Albertim (co-fundadora do Mete a Colher) falou que no

(…) ano passado recolhemos 66 relatos e apresentamos o relatório para a Secretaria da Mulher do Recife e para a Secretaria da Mulher do Estado de Pernambuco. Esse ano, a secretária do Estado prometeu um policiamento mais ostensivo nos pontos que identificamos que mais acontece o assédio.

No Rio de Janeiro a campanha "Carnaval sem Assédio" tomou conta de vários blocos — promovida pelo Catraca Livre, em parceria com a revista “Azmina” e os coletivos “Agora é que são elas”, “Nós, Mulheres da Periferia” e “Vamos juntas?”. Os adesivos foram distribuídos gratuitamente no cortejo das Mulheres Rodadas e também era possível comprar tatuagens removíveis com dizeres "Não é não!", dentre outros.

A denúncia do golpe também foi lembrada pelo bloco, que entoou os gritos de “Fora Temer” e "Fora Crivella". Por essas e outras que o Mulheres Rodadas é mais do que um bloco divertido: ele é a materialização do contra-discurso nas ruas e é absolutamente necessário para que se dispute a cultura.

Créditos: Ana Clara Jansen

(Esse é o meu sexto texto como correspondente para o blog da Stop Street Harassment)

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