Kunyaza e o incômodo em falar sobre o orgasmo feminino

Judith Cavalcanti
Revista Subjetiva

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Algum tempo atrás, circulou nas redes sociais um texto bastante interessante sobre uma técnica sexual desenvolvida e praticada principalmente na África Central que tem como foco o orgasmo feminino: a Kunyaza.

Tradicionalmente, ela serve para relações heterossexuais e, embora eu considere facilmente adaptável para as relações homoafetivas, é sobre as primeiras que posso falar neste momento. Faço essa escolha porque, na nossa cultural sexual, o objetivo do sexo é sempre o orgasmo [com penetração] e, mais precisamente, o masculino. Tentamos há anos trazer o prazer feminino à cama, mas ele ainda é pouco observado [em alguns casos, completamente desconsiderado] no processo.

Obviamente falo das generalidades. Infelizmente, muitas mulheres ainda não conhecem orgasmos mesmo conhecendo o sexo, numa vida sexualmente ativa. E muitos parceiros não se preocupam em dar prazer à sua companheira. Parece uma grande novidade, mas não é. Assim como os beijos e as preliminares, o gozo faz parte do sexo. Também [e não exclusivamente].

Alguns anos atrás, conheci um senegalês numa parada de ônibus. Ficamos de longe nos olhando por um tempo até que ele teve mais coragem e veio falar comigo. Conversa boa, leve. Um homem extremamente charmoso… divertido, inteligente. Nunca gostei tanto do atraso do ônibus… Queria muito encontra-lo depois. Na época, não havia a facilidade de mensagens instantâneas, então trocamos telefone e, durante a semana seguinte, passamos horas conversando.

Ele era muito interessante e, não posso mentir, comecei logo a fantasiar sobre um relacionamento sério. Acho que ele percebeu porque nas primeiras conversas já adiantou que estava no Brasil de passagem e que só poderia me oferecer uma boa companhia para os dias frios, mas me garantia as ‘cinco fases do sexo’. Eu fiquei surpresa pela sinceridade dele e muito mais por descobrir que o sexo tem cinco fases. Não eram duas para diminuir meu prejuízo? Eram cinco!! Contabilizando: ou perdi muitas aulas do kumon, ou a vida ficou me devendo.

Eu me arrependo de não ter vivido aquela experiência. Naquele momento de minha vida, eu queria um relacionamento sério [qualquer dia destes precisamos falar sobre esse tal relacionamento sério e a lógica do patriarcado] e não me abri a viver outras possibilidades. Uma pena porque acho que teria sido interessante descobrir as cinco fases do sexo mais cedo.

Obviamente eu já imaginava que o ato sexual não se reduz à penetração ou ao orgasmo. Saber quais eram todas as fases que eu pulava é que me instigou e passei dias pesquisando. Era novidade para mim, mas as teorias sexuais já falam sobre isso há alguns anos. Aliás, vou corrigir… na prática, não é novidade para ninguém. O problema é que não consideramos parte do sexo momentos anteriores e posteriores à penetração que, segundo as especialistas, influenciam todo o comportamento sexual de um casal e principalmente sua qualidade.

O detalhe é que não é algo romantizado, que só acontece entre pessoas que ‘fazem amor e não sexo’. Em qualquer dos casos, temos o costume de ‘aplicar as fases’: percepção do outro, desejo, excitação, orgasmo e convivência após orgasmo. Na nossa cultura sexual, a percepção do outro, o desejo e a excitação são utilizados apenas como prenúncios do orgasmo e parecem só fazer sentido se ele acontecer.

Não sei… Estou aqui talvez pesando tudo com base nas minhas próprias experiências, claro. Talvez dizer que mesmo assim me parece que não tem sido equilibrado para homens e mulheres seja uma análise não muito adequada. Mas, com este artigo sobre a Kunyaza que andou circulando, eu lembrei das teorias do senegalês e como, mesmo assim, o prazer feminino fica fora do jogo. A psicologia fala das cinco fases [e acho isso ótimo], mas acho que precisamos aprender a mensurar os tempos nessa conta também. Porque afinal homens são estimulados a uma sexualidade precoce e ativa, enquanto que as mulheres são educadas quase à assexualidade. [Usei as palavras ‘estimulados’ e ‘educadas’ de propósito aqui]. Ou seja, as cinco fases devem ser analisadas e vivenciadas considerando as peculiaridades [de gênero, claro, e] pessoais.

Isso já estava me tirando a paz, mas, se toda essa reflexão já me incomodava, eu realmente não sabia que o melhor ainda estava por vir.

Compartilhei aquele post da página de facebook de um amigo. A imagem que acompanha o artigo é maravilhosa: o desenho de uma vagina rosa jorrando gozo. Capa de uma revista de psicologia, eu acho. Muito provocante. Aliás, foi ela que me chamou atenção para a leitura. Uso o Facebook para ter mais contato com amigas e familiares mais distantes, mas uso sobretudo como instrumento político de reflexão e debate que considero democráticos. Então, me apressei em curtir e compartilhar porque as informações do texto podem ajudar a mudar esta realidade sobre a dedicação ao prazer feminino.

Nos comentários ao post, algumas poucas curtidas e outros poucos pronunciamentos. Um homem ousou comentar e falou apenas que havia ‘aprendido mais uma’. Os bastidores, no entanto, foram bem mais dinâmicos. Recebi várias mensagens privadas na rede e no celular. Alguns homens escreveram perguntando se eu falava com conhecimento de causa; outros se colocando à disposição, caso eu quisesse pôr em prática a técnica; um terceiro tipo falou da ousadia em postar ‘algo assim sabendo que a família leria’; por fim, houve os que me aconselharam a me ‘preservar’ dos comentários maldosos. Um chegou a comentar: ‘que artigo mais exótico. Em pleno face!’. A conclusão sintetizou a ideia. ‘Você tá muito louca, gatona’.

Me chamou atenção o fato de que os contatos foram todos masculinos. Não houve debate sobre a importância de se discutir o tema, ou sobre os tabus sociais. Os comentários se restringiram a considerar que aquilo era muita exposição [afinal uma mulher não pode falar sobre sexo, ainda mais em público], um convite ao sexo [e um ‘homem de verdade’ precisa estar pronto para atender a uma necessidade desta] ou fruto de uma vida promíscua [porque ‘mulheres-pra-casar’ não se expõem deste jeito].

E não falo sobre um ou outro amigo. Não me importam as ações individuais, mas somente o fato de que elas foram em grande quantidade. O que significa dizer que é possível e provável que seja uma prática social.

Sei que muitos outros pensaram diferente e até leram para aprender algo legal para fazer com sua parceira. O triste é saber que há outros que pensaram o mesmo, então, de uma certa forma, preciso agradecer a todos os que conseguiram escrever. As mensagens só reforçaram em mim a necessidade de escrever sobre o tema.

Texto originalmente publicado em Mulheres Transeiras.

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Judith Cavalcanti
Revista Subjetiva

Artista Plástica, fotógrafa e militante de direitos humanos. Autora do Mulheres Transeiras — blog sobre sexualidade feminina.