Leitura não é competição

Como foi a experiência de demorar um ano pra ler um livro

Carol Vidal
Revista Subjetiva
5 min readJun 25, 2020

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Foto: Carol Vidal

Entre os dias 29 de março de 2019 e 18 de fevereiro de 2020, eu estive na companhia de um mesmo livro. Eu, que costumo ler relativamente rápido, tive que ressignificar muitas coisas dentro de mim enquanto encarava as mais de mil páginas de “Van Gogh: a vida”, de Steven Naifeh e Gregory White Smith (lançado aqui no Brasil pela Companhia das Letras com tradução de Denise Bottman).

O primeiro desafio foi o tamanho mesmo: uma biografia dessa extensão é de assustar. Fiquei com medo de, ao longo da leitura, ir perdendo o interesse em meio a tantos detalhes e fatos da vida do artista. Mas minha curiosidade falou mais alto e eu iniciei sem saber muito bem o que ia encontrar.

Minha primeira surpresa positiva foi que a forma com que o livro é escrito torna a leitura agradável, por mais que os autores realmente explorem cada mínimo detalhe para compor essa teia de acontecimentos que é a vida de alguém. Então, a história mergulha também no passado dos pais de Vincent, que dizem muito da dinâmica daquela família. É legal ver essas pontas se ligando, e faz acontecimentos banais da vida ganharem significado. Fiquei pensando, enquanto lia, como seria analisar minha própria trajetória com esse olhar ao mesmo tempo distante e atento. Que conexões eu faria entre fatos corriqueiros da minha existência que podem ter influenciado quem eu sou hoje? Ou melhor: eu conseguiria enxergar tais conexões?

Sendo assim, o início da leitura foi uma delícia! Logo pensei: ah, em um mês ou dois eu mato esse livro tranquilamente. Pelo início desse texto, vocês já sabem que não foi bem assim. E não é que ele vai ficando chato nem nada disso, mas, gente, são MUITOS detalhes e, por mais que eu curtisse o que estava lendo, chegava uma hora que cansava, ainda mais que os capítulos são super longos.

Esse é aquele tipo de livro pra ler devagar, saboreando cada página, cada nova informação. Assim como as relações interpessoais, minha relação com esse livro precisou ser construída pouco a pouco. A cada vez que o lia, me sentia mais próxima daqueles personagens e mais participante daquela história. Eu me importava com o que acontecia com eles, me revoltava com atitudes com as quais não concordava, sentia o coração apertar ao ver em Vincent uma criatura solitária desde tão novo.

“Só conhecendo Vincent ‘por dentro’ seria possível ver sua arte como seu criador a via, ou sentir como ele a sentia.”

A história de Van Gogh é muito carregada de emoção, pois os dramas internos do artista moldaram muito quem ele foi, como se relacionava (ou não conseguia se relacionar) com as pessoas ao seu redor e como lidava com sua arte. Não parecia nem justo nem correto querer avançar rápido para saber o que viria a seguir. Eu tive que viver a vida de Van Gogh em ritmo lento.

E aí veio meu segundo desafio: eu passava um tempão lendo e parecia que a porcentagem de leitura nunca avançava. Um capítulo que me custou uma hora de leitura, muitas vezes, representava só uns 2,3% do total. E é difícil lutar contra essa ânsia de terminar logo quando, a todo momento, se ouve falar de metas de leitura, comparações, tem que ler mais, mais, mais. Encarar essas mais de mil páginas me ajudou a entender que quantidade e velocidade não significavam nada quando se trata de um livro.

Vocês devem imaginar que eu não fiquei só lendo esse livro durante esse período. Depois do primeiro mês, em que me dediquei exclusivamente a ele, comecei a introduzir outras leituras, mas sempre tentando tirar um tempinho para dar continuidade à biografia. Olhando meu progresso no Goodreads (que é mais ou menos fiel a como foi essa leitura), dá pra perceber que passei longas semanas sem nem tocar no livro. Às vezes estava cansada e pensava que não valeria a pena o esforço de ler um capítulo gigantesco que exigiria muito da minha atenção, tanto para lembrar algumas coisas que já tinham passado, quanto para absorver novos conteúdos.

Durante essa trajetória, comecei a perceber que, por mais cansativo que fosse, eu mergulhei tanto na história que comecei a sentir falta daquelas pessoas, como se elas fossem amigas minhas; e, de alguma forma, elas foram. Mesmo sabendo o desfecho que eu encontraria, eu torcia pelo melhor, queria que Vincent tivesse sucesso, que seu trabalho fosse reconhecido e que ele conseguisse lidar com aquela angústia que o perseguia desde tão novo (o que me fez pensar, também, o que um bom tratamento psiquiátrico teria feito a ele, se na época tivessem o conhecimento que temos hoje).

O mais interessante de ler um livro por tanto tempo é que ele passou a fazer parte da minha vida e diversas vezes me questionava como seria quando eu terminasse. E digo a vocês: foi estranho. Eu estava tão acostumada a ter esse livro à minha disposição pra ler que, quando acabou, eu fiquei meio sem saber o que fazer. Seria estranho começar a ler outros livros e não ter o pensamento “não posso esquecer de separar um tempinho pra avançar na leitura da biografia de Van Gogh”.

Desde fevereiro, quando terminei, venho pensando em escrever esse texto, pois achava que valeria ter esse registro de uma experiência inédita na minha vida de leitora. Mas aí a vida aconteceu, veio a pandemia e eu comecei a me questionar qual a serventia de um relato desse em meio a tanto caos. E isso me travou.

Só que, sem querer, essa minha experiência me mostrou muito a necessidade de paciência, que tem sido tão essencial pra sobreviver a mais de 3 meses de isolamento. Ler esse livro e ter que ficar em casa me deram a oportunidade de olhar as coisas por uma outra perspectiva e com uma outra velocidade. Será que tudo é tão urgente assim?

E longe de mim querer apagar tudo de complicado que o coronavírus trouxe pra nós em vários aspectos, mas essa é minha forma de sobreviver a esse momento. Não tem sido fácil ficar isolada com medo de uma doença que mata tão rápido, então, precisei repensar muitas prioridades na minha vida, especialmente a importância que cada coisa tem. E esse processo já tinha começado quando me permiti demorar quase um ano pra ler um livro sem me sentir culpada por isso, como se estivesse “ficando pra trás”.

Esse texto não tem uma conclusão em si, mas apenas queria dividir com outras pessoas minha experiência e deixar um recado: não tem um jeito certo de ler, muito menos um ritmo ideal. Tirar esse peso das costas me ajuda a curtir mais essa aventura que é adentrar em tantos mundos diferentes, sejam eles fictícios ou não.

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Carol Vidal
Revista Subjetiva

Carioca que mora em Salvador. Escritora e podcaster que ama cozinhar (palavras e comidas). Conheça meu trabalho: linktr.ee/carolvidal_