Leituras da quarentena: Escravidão

Laurentino Gomes apresenta reportagem de fôlego, mas desliza em temas polêmicos

Helton Lucinda Ribeiro
Revista Subjetiva
3 min readApr 2, 2020

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Desde que o 20 de novembro foi oficializado como Dia da Consciência Negra, a figura de Zumbi dos Palmares vem suscitando apaixonados debates. Laurentino Gomes, em seu livro Escravidão, volume 1, dedica um capítulo inteiro a desmitificar o herói do movimento negro. Todo “herói” é passível de desmitificação. O que causa incômodo, no caso de Zumbi, é o uso de dois pesos e duas medidas: faltam evidências para negar seu papel na resistência à escravidão, não faltam para afirmar que ele próprio tinha escravos.

Gomes não é historiador, é jornalista. Escreve livros-reportagem que, a meu ver, têm importante papel na disseminação de conhecimentos históricos entre o público não especializado. Ele vem se aprimorando desde seu best seller 1808, quando ainda se valia de informações colhidas na Wikipedia. Escravidão, obra dividida em três volumes, cujo primeiro veio a público em 2019, além do trabalho de fôlego no levantamento de dados e pesquisa de campo, tem uma espécie de curadoria do historiador Alberto da Costa e Silva.

O aparente rigor, entretanto, não impede Gomes de fazer a seguinte afirmação categórica na página 426: “Por fim, Palmares nunca foi abolicionista. Ao contrário, os chefes quilombolas, incluindo o mítico Zumbi, tinham seus próprios escravos, capturados nos engenhos vizinhos”. Alega que o personagem heróico seria uma construção ideológica, mas apresenta sua faceta escravocrata como um fato histórico, sem citar qualquer fonte documental ou bibliográfica que o sustente. Isso após ter dedicado boa parte do capítulo a desconstruir o mito Zumbi com base na escassez de documentos sobre o Quilombo de Palmares.

Fatos e interpretação

Outra questão polêmica tangenciada no livro é a da participação dos próprios africanos no comércio de cativos. A escravidão é uma “instituição” antiga. Foi o que tornou possível a democracia ateniense. Hebreus teriam sido escravos na Babilônia e no Egito, como relata a Bíblia. Ao longo do tempo, cristãos escravizaram muçulmanos e muçulmanos escravizaram cristãos. A própria palavra escravo tem sua origem em “eslavo”, grupo étnico loiro de olhos azuis que também já foi submetido ao cativeiro. A escravidão já existia no continente africano antes da chegada dos portugueses e seus navios negreiros. Esses são os fatos narrados pelo jornalista.

Mas o que torna a escravidão negra algo peculiar não é apenas o volume de homens e mulheres aprisionados e vendidos como mercadoria. Há uma questão racial, que estigmatizou de forma perene toda uma vasta parcela da humanidade. E há a lógica do sistema econômico que teve seu embrião no mesmo período histórico: o capitalismo. O circuito mercantil estabelecido entre Europa, África e América por meio da escravidão está intimamente associado à acumulação primitiva (ou originária) que tornou possível a emergência do sistema capitalista. Sem aprofundar essa interpretação histórica, é difícil compreender a diferença entre o comércio ultramarino de cativos e as práticas escravocratas dos povos africanos.

Por falta dessa interpretação, aliás, é que o autor fala em “abolicionismo britânico” ao mencionar os esforços da marinha inglesa contra o tráfico de escravos. Como se, para a Coroa britânica, o fim do comércio de africanos cativos fosse um imperativo moral. Não era. Era uma questão econômica. Em plena Revolução Industrial, a Inglaterra buscava eliminar o trabalho escravo para equalizar os custos de mão de obra (e, por conseguinte, as condições de concorrência) e abrir mercado aos seus produtos manufaturados.

Não que o livro seja ruim. O projeto de Gomes é ambicioso. Esse primeiro volume abarca um período que vai de 1444 a 1700. Traz informações pouco conhecidas sobre diversos personagens importantes da história, como o infante D. Henrique, o trágico D. Sebastião e a impressionante rainha Jinga. Derruba outros mitos, como o do “nativismo” brasileiro na guerra contra os holandeses: a real motivação dos senhores de engenho seria obter vantagens de crédito na compra de escravos (as infindáveis rolagens de dívidas das quais latifundiários se beneficiam até hoje), coisa que a Companhia das Índias Ocidentais não estava disposta a oferecer.

Os volumes 2 e 3 estão programados para 2021 e 2022, respectivamente. Estou ansioso para ver como Laurentino Gomes abordará temas como a relação entre o fim do tráfico negreiro e a aprovação da Lei de Terras de 1850, sem falar da própria Lei Áurea.

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