Linhas tênues: sobre dinâmicas afetivas e sobrevivência

joice berth
Revista Subjetiva
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6 min readJul 11, 2018

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a altivez e elegância dos movimentos da bailarina Ingrid Silva servem de inspiração para a decisão justa de cuidar do nosso emocional e não se deixar atingir pelas injustas exclusões da meritocracia afetiva.(foto: divulgação/revista glamour)

Não podemos, e se pudéssemos não deveríamos, obrigar pessoas a gostar da gente. Não vira, não rola, não acontece só porque a gente quer.

E vamos combinar que obrigação e sentimento não cabem na mesma mala.

Não importa o motivo da ausência de reciprocidade dos nossos afetos, devemos respeitar a rejeição da outra parte. Quem valoriza as próprias escolhas sabe respeitar as escolhas alheias.

Mesmo as escolhas mais cretinas, pautadas pelas distorções e padrões mesquinhos da sociedade, devem ser respeitadas.

Existe racismo e machismo(esse combo amargo) pautando as escolhas?

Sim, evidentemente.

Existem preconceitos diversos pautando as escolhas afetivas?

Claro, sempre existiu e vai continuar existindo enquanto eles sustentarem a nossa formação social.

E é exatamente por isso que devemos cada vez mais desenvolver nossa independência emocional e nossa autonomia afetiva. Ser reservatório de bons sentimentos a espera de usá-los com nós mesmos, toda vez que a vida demandar e as pessoas se mostrarem incapazes de responder nossas carências. E isso será quase sempre. Se nós não estamos a disposição do emocional dos outros, porque teriam que estar a disposição do nosso. Isso é uma percepção fundamental sobre responsabilidade afetiva.

Nada pode ser mudado no grito, já que estamos falando de um contingente enorme de pessoas e de uma situação histórica, ou seja, que não começou ontem. Perceber e apontar que em uma sociedade tão deformada por opressões e dinâmicas de dominação que formam grupos excluídos é uma obrigação. Refletir sobre o jargão do senso comum acrítico “gosto não se discute”, por exemplo, é vital. Mas entender que nem todos estão dispostos a usar o cérebro para mudar padrões prejudiciais de comportamento social é vital para nossa saúde mental.

O racismo define o sistema de meritocracia amorosa. E não apenas ele: o etarismo, a classe social, a ascendência europeia, a passividade e grau de submissão(em especial das mulheres), a performance de gênero, entre outros diversos fatores que nada tem a ver com amor.

Anúncio da Prefeitura de Fortaleza falando sobre diversidade no amor. Nenhuma mulher negra, pelo que parece, se enquadra no que eles chamam de diversidade. (imagem: internet)

Muitas vezes, vejo casais fazendo juras de amor e por instante eu acho tão bonito, mas minha lucidez me faz questionar logo em seguida essas manifestações românticas cênicas:

Se esses casais fossem reprovados pelo crivo da inadequação social que implica, por exemplo, a não aceitação de relações fora do padrão heteronormativo, estariam ainda tão apaixonados? Será que se o casal não for bonito o bastante para sair em belas fotos que servem de deleite para as estruturas de poder da sociedade, estariam tão suspirantes e ronronantes?

Dificilmente.

O que quero dizer é que precisamos compreender que nossas rejeições, grosso modo nada tem a ver com nossa capacidade de dar e receber amor, porque isso não é a busca. A busca é pelo status social, pela aceitação e ostentação de uma felicidade duvidosa, forjada para manter o teatro de uma sociedade que pula corpos diariamente até 23/12 mas dia 25, devidamente envolto na fantasia da moral cristã (mesmo quando não é cristão assumido) vai falar em amor, fraternidade, união, etc.

Aimée Cesaire, fala sobre a permissão que a sociedade branca dá para que crimes continuem acontecendo em Discurso sobre Colonialismo. Essa mesma permissão faz parte da dinâmica que forma hierarquias afetivas. Se não entendemos isso, sobretudo quem é atingido diretamente, corremos o risco de terminar nossos dias antes do tempo e por vontade própria, pelo vazio interior construído pela tristeza de múltiplas violências vivenciadas

Se esses casais estivesses totalmente inseridos nos estereótipos de raça, por exemplo, haveria esse amor todo e proclamado com tanta veemência?

Obviamente não. Se os estruturantes sociais atuam em todas as áreas, porque a afetividade ficaria de fora? Mas apesar de sabermos tudo isso, em especial quem faz parte do grupo social que sofre essas exclusões, nós mulheres negras ou fora do padrão de aceitabilidade decantado pelos filmes românticos e pares novelescos, não dá para ficar presa/o na ideia de que devemos ser amadas a qualquer custo por outras pessoas. Desejamos isso, ok. Mas sejamos honestas com nós mesmas, não depende de nossa vontade. E precisamos ter maturidade para encarar rejeições de toda espécie, porque elas são inevitáveis.
A gente precisa entender que sentimento nosso é nosso, de dentro da gente.

Rejeição não é necessariamente pelo que falta no rejeitado, existem milhões de motivos pra se rejeitar uma pessoa. Muitos deles podem estar relacionados a quem rejeita.
Os sedutores pegam os vulneráveis, os desatentos ou…os masoquistas…os polyanas…os que estão afim mesmo de serem fisgados. Ser “fisgado” pressupõe alguém sem o menor cuidado com o próprio coração, sem o menor respeito pelos seus sentimentos. Não é o outro que deve decidir que te quer, é você que tem que medir até que ponto uma proximidade é verdadeira e, se ela realmente vale a pena se levada adiante.
Se caiu na rede, decida se quer mesmo ser peixe, nadar em águas turvas e incertas…as vezes nem é mar…é só piscina mesmo, banheira, bacia, usada, deformada por uso indevido ou suja por anos de negligência e descaso com as próprias imperfeições.

Isso é com a gente, essa escolha de se abrir pra quem tá fechado ou aberto pra outros/as, não necessariamente de maneira sincera e desprendida dos efeitos das estruturas sociais em suas vidas.

Isso a gente pode controlar, decidir e sofrer sozinho se for o caso.

Mas sem achar que o outro “deve” ficar, gostar, corresponder ou seja lá o que for.
Em muitos casos, o outro não pediu teu afeto e não é obrigado a devolver.

E se pediu a decisão de dar ou não é nossa. É imaturo pensar o contrário.

É cruel consigo mesmo se torturar esperando, insistindo, tentando regar semente que não foi plantada.

Nem acho que é falta de amor-próprio…as vezes é excesso de vaidade, é birra egoísta de se achar tão foda que o outro não tem o direito de te dizer não(principalmente no caso dos homens).
Vamos crescer néam…

Respeitar os nãos e se permitir achar outra(s) terras(s) onde caibam nossas sementes de futuros afetos é sinal óbvio de maturidade.

Buscar outras águas, mais cristalinas e amenas, onde a gente possa nadar largado, sem crises e com total serenidade. Sentimento bom e perturbação de qualquer espécie são antagônicos sempre.

Coisa boa, gente boa, relação boa traz primeiramente a calma. Pode reparar.
Sempre tem. Sempre. Nem que seja você mesmo.

A gente é uma companhia massa pra gente mesmo. Esse amor completo, incondicional, que aceita a gente do jeitinho que a gente é, com todos os defeitos que mais desejamos esconder e as qualidades que desejamos ostentar, só vem de nós mesmos.
Tem gente pra caramba no mundo buscando gente pra amar. Isso é uma realidade que ninguém fala, porque no fundo, somos todos desejosos de status social que adquirimos ao nos relacionarmos com o ideal construído pelo senso comum.

Se a gente se despe das limitações mundanas acaba achando gente bem bacana, pelo menos para uma amizade honesta.

Amizade também é uma forma de amor poderosa. E sexo…bom sexo e amor não são necessariamente amigos íntimos…mas isso é outra conversa.
Já dizia minha avó:

“sempre tem um chinelo véio prum pé cansado.”
Mas tudo bem também andar descalço.

proteja-se, ame-se e respeite-se como se não houvesse amanhã. (foto: internet)

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