Lugar de Fala Não é o Que Você Pensa
Situação Hipotética: você, uma pessoa branca (ou hétero, ou homem), está em um debate acalorado na internet. Seu interlocutor acabou de dizer algo racista (ou LGBTfóbico, ou machista). Seu primeiro instinto é apontar isso, mas no fundo da sua mente surgem algumas dúvidas: será que eu tenho lugar de fala? Será que eu posso? E se posso, será que devo?
A situação descrita acima é uma das muitas confusões que surgiram na mente das pessoas quando a internet se apropriou do termo em questão.
Em debates nas redes sociais, por exemplo, não é raro ver uma discussão sendo encerrada com a já clássica “cala a boca, esse não é seu lugar de fala”.
Acontece que essa frase revela uma interpretação incorreta acerca do significado do termo.
O conceito, como podemos perceber no exemplo acima, é usado rotineiramente como se fosse uma espécie de barreira imaginária que indica quem pode ou não debater determinado assunto. Ou seja, apenas pessoas pretas poderiam falar sobre racismo, mulheres sobre feminismo, transexuais sobre transfobia e por aí vai.
No entanto, lugar de fala não é essa barreira que impede pessoas de opinarem em qualquer discussão que seja. Isso porque todos tem o direito constitucionalmente garantido de emitir suas opiniões e ideias e, não sendo o caso de ferir o direito de outrem, todos são livres para comentar sobre o que bem entenderem.
Assim, quem usa o termo como se fosse [essa barreira] apenas o coloca em uma posição em que ele nunca será efetivo, que nunca ocupou ou sequer tensionou ocupar.
Tratar dessa forma, portanto, é esvaziar o termo e colocá-lo frontalmente contra o direito à liberdade de expressão.
Ta, mas se não é uma barreira, então…
O QUE É LUGAR DE FALA?
Bom, a ideia por trás é que sempre quando se fala, fala-se DE algum lugar.
Ou seja, em vez de uma barreira, o mais correto seria considerar que o conceito serve como um marcador que nos aponta de onde, dentro da estrutura social, determinada fala foi emitida.
Como assim?
Historicamente nossa sociedade privilegiou alguns grupos em detrimento de outros. Isso se evidencia em muitos aspectos, como no fato das mulheres ainda hoje receberem menos que os homens na mesma função, na alta taxa de desemprego entre mulheres negras, entre tantos outros exemplos.
O privilégio estendeu-se também no campo discursivo (no sentido de dizer e ser escutado nos mais diversos ambientes sociais e de produção de saberes).
Assim, os grupos privilegiados tiveram suas vozes amplificadas enquanto as dos demais foram silenciadas e excluídas do debate sobre os rumos da sociedade, propostas políticas, exposição de necessidades, produção de conhecimento, etc.
Dessa forma, os dizeres dos grupos minoritários, quando emitidos, partem do lugar que eles ocupam na sociedade [de exclusão, marginalização e silenciamento].
Do outro lado, quando pessoas de um grupo privilegiado falam, também o fazem a partir de sua localização social [ de maior abertura e possibilidades, ocupação de espaços políticos, poderio econômico, etc].
Para resumir: todos tem lugar de fala, mas, sendo nossa sociedade desigual, cada grupo o faz a partir do seu próprio.
Isso pode parecer papo de acadêmico, intelectual ou mera teoria sem nenhuma aplicação prática, mas não é.
É importante entendermos que existem essas diferenças estruturais nos pontos de onde grupos distintos emitem seus discursos, pois aí poderemos promover suas vozes, ampliando com isso uma real democracia e elevando o nível do debate público.
Para terminar e respondendo às dúvidas da situação hipotética proposta no começo desse texto: sim, você tem lugar de fala, afinal o faz a partir de um local na estrutura social. E sim, você pode e deve apontar o preconceito sempre que com ele se deparar. O mundo agradece.
Djamila Ribeiro, filósofa e feminista negra, se tornou referência no assunto aqui no Brasil. Esse texto nasceu de reflexões que tive após pesquisar sobre o que ela vem dizendo e da leitura do seu livro dedicado ao tema.