Minha vaidosa “bondade”

André Ulle
Revista Subjetiva
Published in
4 min readMar 28, 2018
Ilustração: Daria Kanevskaya

O primeiro dia em um novo trabalho é cheio de momentos onde não sabemos muito bem como agir. Há um longo caminho até nos sentirmos confortáveis para interagir naturalmente. Pelo menos para mim, que sou bem receoso nos começos.

Não bastasse o primeiro dia por si só me fazer sentir como se segurasse cada pequena situação, como quem segura copos de cristais com mãos ensaboadas, ainda existia o fato de eu estar migrando de uma empresa pequena e familiar para uma multinacional. Porém esse dia ainda reservava uma taça mais delicada para segurar. Cumprimentei meus novos colegas, e um deles era surdo, logo me ensinaram os sinais para dizer: “Oi” e “Cagada”.

Meu lugar seria ao lado do rapaz surdo, fiquei super feliz com isso! Feito as devidas apresentações, mãos à obra, hora de configurar o ambiente de desenvolvimento em meu computador, e receber um breve treinamento sobre o software que iríamos desenvolver. O treinamento foi dado pelo Lucas, meu novo colega surdo. Um súbito medo começou a tomar conta de mim, enquanto ele me explicava, uma ansiedade terrível não me deixava em paz, o medo de não conseguir entender, de ter medo de ofendê-lo caso tivesse que pedir para ele repetir alguma informação. Nada disso aconteceu, ele foi didático e preciso em cada informação.

Algumas vezes o Lucas precisava tirar dúvidas comigo, e era realmente difícil estabelecer comunicação. Decididamente precisava aprender LIBRAS (Linguagem Brasileira de Sinais) e havia um curso semanal na empresa. Não faltei um dia sequer, me apaixonei pela comunicação em LIBRAS, estava descobrindo um novo mundo, uma nova cultura, e não apenas substituição de palavras por sinais.

Passei de “Oi” e “Cagada”, para assuntos do dia-a dia e até a explicações complexas sobre algoritmo e conceitos de software. Ainda que não soubesse muitos sinais, e fosse lento, havia decorado o alfabeto, e já estava bem a vontade para fazer caretas e mímicas. Ao longo dos meses a comunicação se tornava ainda mais fluídica. Comecei a traduzir reuniões, traduzir o que outras pessoas falavam, traduzir o que se falava nas meses de happy-hour e almoços. Mergulhei em LIBRAS e aquilo era realmente empolgante.

Passado um tempo e a rotina ironicamente acenava “Oi” e “Cagada”. Eu já não conseguia interagir nas reuniões e palestras, fazer perguntas, ou refletir criticamente sobre o assunto. Estava centrado em traduzir, e por vezes dizer de forma diferente algum jargão ou figura de linguagem que não tinha sentido em LIBRAS. A medida que era cada vez mais natural, também me sentia um pouco cansado, e com vontade de desistir daquilo.

Há um ponto que negamos no mais profundo da alma, mas que nos motiva muito para ações sociais: nossa vaidade. Existe um ponto nos trabalhos sociais que não é nem um pouco atraente para nossa vaidade: quando a obrigação toma forma. Nesse momento as pessoas não o elogiam mais por estar se dedicando pelo “bem”, isso é o que elas esperam de você. O cansaço começa a falar mais alto que a motivação (ou vaidade). Assim descobri a principal diferença entre eu e o Lucas: ele nunca teve a opção de desistir.

Tentando resumir a história dele: ele dedicou 18 anos da sua vida para aprender a falar como nós, todos os sábados tem aulas de Português (até então eu não fazia ideia de que Português era o segundo idioma dos surdos). Para poder entender as pessoas aprendeu a fazer leitura labial, e faz isso com uma velocidade e precisão incrível. Para trabalhar com desenvolvimento de software, teve que aprender a se virar com o inglês. Para mim é um desafio aprender uma linguagem de programação nova, para ele o desafio já começa em atividades triviais, como “pesquisar no Google”, mesmo que seja em português.

O Lucas precisa de todo esse esforço para estabelecer comunicação, com cada novo ouvinte que ele conhece na vida. Em cada novo trabalho. Aquilo que enfrentei uma vez, é a sua luta diária e ininterrupta desde a infância. E ele faz isso com um sorriso constante, uma simpatia gigantesca e uma paciência maior ainda. Após ter a consciência de como eu estava lidando com aquilo, aprendi a admirar fortemente cada um desses gestos.

E a admirar o fato de que ele nunca desiste.

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André Ulle
Revista Subjetiva

Escrevo para abraçar meus demônios e perdoar meus pecados