Monteiro Lobato em domínio público. E agora, Emília?

Edson Amaro De Souza
Revista Subjetiva
Published in
3 min readJul 4, 2020

Fui criança nos anos 80 e cresci vendo o “Sítio do Pica-Pau Amarelo” na TV Globo. Tanta gente viu que o Brasil vive a ilusão de achar que conhece Monteiro Lobato, tal como aquele pessoal que vai à igreja e recolhe migalhas da Bíblia acha que conhece esse clássico universal. Não, Monteiro Lobato não é como a Globo diz que é, assim como a Bíblia vai muito além das migalhas que as igrejas jogam para o grande público. A leitura de ambos me trouxe decepções.

Karin Paredes

Na minha infância, eu lia gibis da Disney e da Turma da Mônica, razão pela qual pouco sei de literatura infantil: sei dizer agora, sem consultar nenhum site de busca, os nomes de Lobato, Ziraldo e Ruth Rocha, dos quais já li algumas coisas. Não me perguntem mais nada.

A primeira vez que li Lobato foi aos 15 anos. “Memórias da Emília”. Fiquei escandalizado com a forma desrespeitosa como Emília trata Tia Nastácia. E esses abusos são tão frequentes que eu acho muito difícil usar Lobato na escola hoje, pois as escolas estão cheias de negros, ao contrário da época de Lobato, em que a maior parte dos negros — e metade da população brasileira, brancos inclusive — era analfabeta.

Percebi que Lobato estava ultrapassado mas não superado. Ultrapassado porque hoje as crianças não sabem quem foi Shirley Temple, a atriz americana que brinca com os netos de Dona Benta em “Memórias da Emília”, e não há mais quem duvide que haja petróleo no Brasil, a polêmica que Lobato tratou em “O Poço do Visconde”. — E hoje os cientistas não explicam a formação do sistema solar tal qual o Visconde o faz no seu breve curso de Geologia no início do livro.

Mas não está superado porque eu não vejo nos autores de literatura infantil a disposição que Lobato tinha para discutir com as crianças o mundo dos adultos. “O Poço do Visconde”, como eu disse, é sobre a polêmica do petróleo, se existia ou não no Brasil. No livro “Emília no País da Gramática”, Emília se declara divorciada de Rabicó e expressa seu desejo de casar com um pirata. O Parlamento brasileiro só tomou vergonha na cara e votou a lei do divórcio, afrontando as igrejas, em 1977, quando Lobato já atravessara o Aqueronte. Cadê agora um autor que apresente às nossas crianças a necessidade de investimento em energia solar e a luta ecológica de Greta Thunberg?

Agora, Lobato está em domínio público e novas publicações aparecem. Vi no shopping uma pequena coleção de Lobato, lindamente ilustrada, mas que não é nem a metade de sua obra infantil. Faltou coragem aos editores de publicarem tudo, em atenção aos sentimentos dos negros. Uma outra editora contratou um reconhecido autor de literatura infantil para reescrever Lobato, cortando as partes que ofenderiam o público politicamente correto. A editora Cartola promoveu um concurso para criar uma antologia de contos sobre os personagens do Sítio — obra que só terá mesmo a ilustração da capa, mas eu, adulto, estou ansioso para ler. Profissionais de teatro estão animados para fazerem peças infantis sem dar satisfação a ninguém, interpretando os clássicos personagens.

Peças teatrais e histórias com uma boneca de pano falante, tudo bem. Mas ainda há lugar para um boneco feito de sabugo de milho? O Brasil de Lobato era um país em que a maioria da população ainda vivia no campo e em que quase não havia indústria. Há lugar para o Visconde de Sabugosa num país em que as crianças se divertem com laptops?

Não condeno quem ainda queira escrever histórias com os personagens que divertiram sua infância, mas está na hora de alguém ter a mesma ousadia de Lobato e semear dúvidas nas cabecinhas infantis, e colocá-las a par das grandes questões do nosso tempo. Está na hora de colocar Tia Nastácia no Senado e Narizinho instalando painéis solares no Sítio.

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