não foi um “assédio concreto”

carolina
Revista Subjetiva
Published in
2 min readNov 7, 2020
‘escaping reality’ / kallen mikei

faz dois meses [repetições]

60 dias

1440 horas

86 mil e 400 minutos

5 milhões 184 mil segundos

era 6:10 da manhã

não havia ninguém

nem um pé, mão, nem cabeça de gente

não tinha gente [repetições]

sem roupa, nem de farda azul e branca

nem porco, nem vermes do horizonte

sol também não

a escuridão da manhã da

parte gentrificada duma cidade

que não madruga para trabalhar

e deus não ajuda

quem desde cedo não madruga

se a praça estivesse lotada e iluminada mudaria alguma coisa?

tu teria me ajudado? [ pausa + repetições ]

enquanto não tinha NINGUÉM

eu estava segura

o problema foi depois que teve

dois homens

um carro

alta velocidade

escutei os freios,

não tinha semáforo ali

apressei os passos, sem ousar encará-los

baixei a cabeça

dois homens e um carro

me seguindo [pessoas me seguem]

me gritando, berrando

para ir pra casa com eles

eu só precisava chegar no trabalho

corri

desviei do carro

mas não dos olhos, nem dos gritos

“te pegamos lá na frente”

corri mais e mais rápido

até cair na escuridão

“mulher brasileira é tudo puta”

“olha o corpo dela de latina

“andando sozinha essa hora na rua, vai querer trepar com a gente”

eu corri muito, corri até cair no chão,

até a respiração falhar

o fôlego acabar

e não achava ninguém, ninguém na rua que pudesse me ajudar

não parei de correr nem quando meus olhos derramaram,

nem quando meus sapatos ficaram no meio do caminho,

nem quando eu caí,

nem quando eu cheguei na escuridão

escondida na ausência total de luz

o breu me salvou

e

invisível, percebi

:

eles me obrigam a me esconder para sobreviver.

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