não foi um “assédio concreto”
faz dois meses [repetições]
60 dias
1440 horas
86 mil e 400 minutos
5 milhões 184 mil segundos
era 6:10 da manhã
não havia ninguém
nem um pé, mão, nem cabeça de gente
não tinha gente [repetições]
sem roupa, nem de farda azul e branca
nem porco, nem vermes do horizonte
sol também não
a escuridão da manhã da
parte gentrificada duma cidade
que não madruga para trabalhar
e deus não ajuda
quem desde cedo não madruga
se a praça estivesse lotada e iluminada mudaria alguma coisa?
tu teria me ajudado? [ pausa + repetições ]
enquanto não tinha NINGUÉM
eu estava segura
o problema foi depois que teve
dois homens
um carro
alta velocidade
escutei os freios,
não tinha semáforo ali
apressei os passos, sem ousar encará-los
baixei a cabeça
dois homens e um carro
me seguindo [pessoas me seguem]
me gritando, berrando
para ir pra casa com eles
eu só precisava chegar no trabalho
corri
desviei do carro
mas não dos olhos, nem dos gritos
“te pegamos lá na frente”
corri mais e mais rápido
até cair na escuridão
“mulher brasileira é tudo puta”
“olha o corpo dela de latina”
“andando sozinha essa hora na rua, vai querer trepar com a gente”
eu corri muito, corri até cair no chão,
até a respiração falhar
o fôlego acabar
e não achava ninguém, ninguém na rua que pudesse me ajudar
não parei de correr nem quando meus olhos derramaram,
nem quando meus sapatos ficaram no meio do caminho,
nem quando eu caí,
nem quando eu cheguei na escuridão
escondida na ausência total de luz
o breu me salvou
e
invisível, percebi
:
eles me obrigam a me esconder para sobreviver.