Não me chama de linda

Só hoje, me chama de qualquer outra coisa.

Giovanna Indelicato
Revista Subjetiva
4 min readMar 8, 2018

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Pingou dia desses no grupo da família um jornal de 1953, enquadrado. Na matéria, três fotos de uma mesma mulher, uniformizada, jogando basquete. Na manchete, o nome dela. O sorrisão no rosto da mulher é inconfundível. É a minha avó. Eu nunca tinha visto uma foto da minha avó na juventude.

Eu sabia que minha avó havia sido jogadora de basquete, representava o time de um clube famoso. Eu sabia também que, para casar com o meu avô, ela largou o esporte, teve cinco filhos e dedicou-se a família o resto da vida. A mulher nas fotos é encantadoramente bonita, alegre, contagiante. Igual minha avó.

Dorothy e Carmelo, carnaval, 1969

Mais tarde, conversei com minha mãe sobre as fotos. “Não foi a única vez que ela saiu no jornal.”, disse, e eu me derretia de orgulho e admiração. “Mas não vamos conseguir achar os recortes. Ela detestava vê-los e sempre nos pedia para esconder. Entre uma mudança de casa e outra, perdemos.”. Diante da minha incredulidade, minha mãe explicou que a Dorothy se achava muito feia, e muito velha, e não gostava de se olhar no espelho, e que chorava quando via fotos de quando era jovem e linda.

Passei os dias seguintes me esforçando para recriar as lembranças da minha avó, já distantes na memória. Tentei lembrar dela não da forma infantil que eu sempre lembrei, mas como uma mulher que observa outra mulher. Que não acha que é linda. E que isso a deixa triste. Foi inevitável não reconhecer na minha avó muitas das mulheres que conheço. Que foram convencidas de que não são lindas. Que só existe um jeito de ser linda. E que se não podem ser lindas, são feias, e nada mais.

O elogio que toda menina mais ouve enquanto cresce é que é linda. O quanto o nosso valor é atrelado a essa palavra, a esse adjetivo? Não é surpresa que uma mulher que não acredite ser linda não ache que é nada mais. Enquanto os garotos são espertos, levados, sapecas, engraçados e arteiros, nós somos lindas. Eles crescem para ser inteligentes, perspicazes, sagazes, criativos, engenhosos, nós somos lindas ou não.

Minha avó, maravilhosa, como eu me lembro

Nada de errado ser chamada de linda, inclusive é uma delícia. Mas o que fez a minha avó acreditar que ela era só isso? E que perdera isso com o passar dos anos?

A gente se esforça pra ser tantas outras coisas. Eu queria que tivessem convencido a minha avó de que ela era linda, todos os anos, e que era também muitas outras coisas. Que o brilho do olho dela encantava qualquer um. Que a risada dela era gostosa. Que ninguém tinha medo da surra de pantufa que ela tanto ameaçava dar nos netos porque ninguém tão meigo seria capaz de machucar alguém. Que ela era boa de jogo, boa de carteado, boa no bingo. Que ela era tão forte que passou pela maior dor que uma mãe pode ter. Queria que ela não fugisse do espelho nunca, que ela se olhasse e tivesse o orgulho que todo mundo que conhecia ela tinha.

Por isso hoje, pelo menos hoje, não me chama de linda. Me chama de escritora. Me chama de ciclista. Me chama de engraçada. Fala para sua amiga que ela é uma boa ouvinte, que ela é elegante, que os conselhos dela são ótimos. Fala pra sua colega no trabalho que ela passa confiança, que a determinação dela inspira, que ela anima o ambiente. Observa sua mãe, o cuidado que ela tem com as coisas, a paciência, como ela é simpática. Conta para aquela conhecida que você a admira. Que ela é uma inspiração. Na próxima vez que sair em grupo, repara não só que suas amigas, que sua namorada, que a mulher que te interessa é linda, mas repara no que a faz linda: é a auto-confiança, é o estilo, é o gesticular das mãos, é o jeito que ela conta uma história, é aquela pinta na testa. E principalmente: quando conhecer uma garotinha, não chama ela só de linda. Ela já é muito mais do que isso.

Dorothy Ardizoni, uma estrela da equipe tricolor

Este texto faz parte do nosso Especial: 8 de março.

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Giovanna Indelicato
Revista Subjetiva

roteirista e diretora de todas as fanfics que já passaram pela minha cabeça