Não me venha com o seu feminismo “Girl Boss”

Ter mais mulheres em posições de poder apenas perpetua um sistema que, pasmem, sobrevive à base da desigualdade.

Ana Clara Barbosa
Revista Subjetiva
3 min readOct 18, 2019

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arte: @arrasoli

Eu sei, esse título é apelativo, mas eu queria chamar atenção e provocar você, feminista liberal, que sai por aí repetindo que “mulheres não querem flores, mulheres querem ser CEO”.

Se você, assim como eu, entrou em contato com o feminismo por meio da internet, muito provavelmente conheceu o movimento primeiramente pelas pautas mais básicas — e óbvias — , como igualdade salarial, fim da cultura do estupro, liberdade sexual, poder de escolha sobre o nosso próprio corpo.

Todas essas reivindicações são válidas, é claro. O problema é que, muitas vezes, as reflexões param por aí, ainda mais neste ambiente da internet. Também existiu uma gigante apropriação do discurso feminista, principalmente dessas pautas que são mais palatáveis. É fácil ver atrizes globais e influenciadoras repetindo essas falas, afinal, como eu disse, elas são óbvias. Qualquer pessoa com um pingo de humanidade e empatia defende que mulheres não devem ser estupradas, que nossos salários devem ser iguais aos dos homens, que nós podemos transar com quem bem entendermos e nem por isso somos putas.

A grande questão é não pensar na estrutura por trás de todos esses problemas. É achar que, com mulheres ocupando cada vez mais posições de poder, o patriarcado acaba. Se o seu objetivo como feminista é virar CEO de uma empresa, sinto-lhe informar, mas muito provavelmente você só perpetuará um sistema opressor que necessita da desigualdade para que o mundo continue sendo o mundo. Esse discurso meritocrático e liberal propõe apenas que um pequeno grupo de mulheres privilegiadas escale as hierarquias corporativas, enquanto todas as outras continuam sendo exploradas. A visão de igualdade, aqui, é pautada pelo mercado, que se apropria do discurso da “pluralidade de pessoas” para, no lugar de abolir a hierarquia social, apenas diversificá-la.

Esse feminismo liberal é compatível com a desigualdade e, normalmente, as mulheres que conseguem ascender dentro dele são aquelas que já contam com muitas vantagens sociais, culturais e econômicas. Com isso, elas acabam se apoiando sobre mulheres pobres, em sua maioria negras ou imigrantes, para que essas façam os trabalhos domésticos com uma remuneração baixíssima. Esse processo vincula a causa ao elitismo e ao individualismo, como se o feminismo fosse um movimento independente, que preza pela ascensão pessoal de cada mulher.

É claro que enxergar o feminismo nessa perspectiva torna o movimento mais amigável. Como eu disse, é uma forma de entrar em um primeiro contato com as nossas pautas, mas é inconcebível enxergar que algumas das nossas lutas podem existir ou não dentro de determinado grupo feminista. A descriminalização do aborto é um exemplo que cai muito bem neste contexto. Um feminismo que se preze entende que ser contra o aborto legal é ser a favor do aborto clandestino e, consequentemente, da morte de mulheres das classes mais baixas. Essa despolitização do movimento resulta em discursos como o da deputada Tabata Amaral, que afirmou, em entrevista ao Roda Viva, que é possível ser feminista e ser contra o aborto. Na realidade, isso é completamente incoerente, afinal, se o feminismo busca acabar com as opressões sexistas, privar mulheres das escolhas reprodutivas é, obviamente, uma dessas opressões. Portanto…

Essa ideia do feminismo como “estilo de vida” traz a falsa concepção de que podem existir muitas versões do movimento, ao mesmo tempo que resulta em uma exaltação dos avanços individuais. Não faz sentido acabar com a opressão apenas de algumas e continuar a consentir com a existência de um sistema que sobrevive à base da desigualdade. Não existe feminismo que explora outras mulheres — ou outras pessoas. Como foi dito no livro “Feminismo para os 99%” de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser: “Longe de celebrar as CEOs que ocupam os escritórios mais luxuosos, queremos nos livrar de CEOs e escritórios luxuosos”.

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Ana Clara Barbosa
Revista Subjetiva

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