Não precisamos de um novo Skywalker
Sem spoilers — a não ser na última frase
Quem me conhece sabe que sou fã de carteirinha da saga desde os 8 anos, mas foi apenas aos 15 — quando do lançamento de “O Despertar da Força” — que entendi a verdadeira história por trás das guerras clônicas, da família Skywalker e dos sabres de luz. E então entendi que Star Wars não fala de guerras clônicas, da família Skywalker ou tampouco de sabres de luz.
Desde então, considero a franquia criada pelo genial George Lucas uma das mais completas leituras cinematográficas do funcionamento dos movimentos políticos e da política em si, da guerra, e de outros inúmeros aspectos da vida, como bondade, confiança, altruísmo, amor, liberdade, poder e traição — não é à toa que há tantos filmes, livros e desenhos envolvendo o universo de Yoda e Darth Vader.
Já deu para entender que minha análise será política, e não estética. Mas também é preciso deixar claro que não venho aqui falar sobre o episódio IX — que embora tenha minhas críticas, considero, diferente de grande parte dos fãs, um ótimo filme com uma conclusão excelente para a saga (por diversos motivos que não caberão nesse texto, mas que envolvem detalhes que noto que a maioria dos fãs se esqueceu ou simplesmente ignorou ao longo dos longos filmes de 2 horas e meia). Sendo assim, esse texto é um texto político, como a maioria dos que escrevo, que terá como guia as mensagens e abordagens políticas do universo de Star Wars.
E antes que venham dizer que estou politizando um simples filme, fiquem com os dizeres de George Lucas em entrevista à BBC em 2005:
“A história original foi escrita há 30 anos, durante a Guerra do Vietnã, na era Nixon. Eu não queria fazer um filme sobre como pessoas assumem o controle de uma democracia, queria entender como democracias podem se entregar a tiranos.”
Então pegue seu sabre, chame seu droide, aperte os cintos e que a força esteja com você!
Para um espectador de primeira viagem ou um fã que, como eu, imergiu na saga ainda criança, pode ser difícil captar do que se tratam aqueles roteiros cheios de reviravoltas e batalhas extasiantes. Sempre que assisto aos 11 filmes (contando agora com “Solo”, “Rogue One” e “A Ascensão Skywalker”) tenho uma percepção diferente da história — afinal, não dá para julgar o nosso cérebro por deixar certos detalhes escapulirem quando se trata de algo tão denso e complexo.
Sendo assim, é bom começar esclarecendo uma coisa fundamental: Star Wars não é sobre batalhas épicas, sobre uma guerra interminável ou tampouco sobre a importância dos Skywalker no equilíbrio da força. Star Wars é um filme político. Idealizado, produzido e lançado em tempos de Guerra Fria, em tempos de ditaduras sanguinárias ao redor do mundo e de guerras que pareciam que nunca teriam fim, tempos de escândalos de corrupção como o caso Watergate, quando o medo de uma guerra nuclear ainda era aterrorizante e a esperança estava longe de ser o sentimento mais cultivado.
Bem por isso, Star Wars se centra em algo que não está tão distante de nós em tempos atuais, em que livros no estilo de “Como as democracias morrem”, de Steven Levitsky, estão entre os mais vendidos do planeta. Star Wars aborda a democracia, a corrupção, a sede de poder, a importância da independência e da firmeza das instituições, a conspiração e a liberdade, sobretudo como esta morre em cenários de extremismo, guerra e insegurança: “com um estrondoso aplauso”, como bem dito pela primeira heroína dos jovens fãs, Padmé Amidala (Natalie Portman).
Vivemos um momento, no Brasil e no mundo, em que o medo, a insegurança, os abalos de crises econômicas e a absoluta descrença no estado de bem estar social e nas tradições democráticas como resposta aos problemas dão voz a discursos populistas e a projetos extremistas de poder, que prometem combater a corrupção e a desordem e propõem respostas simples aos problemas mais complexos que as sociedades ocidentais já presenciaram. Vozes que tentam chegar ao poder e, quando nele estão, tentam mantê-lo a qualquer custo. Vozes corruptas, rancorosas, inconsequentes e perigosas, que fazem tremer as estruturas de todo o mundo.
O velho udenista Octávio Mangabeira afirmava que a democracia é uma plantinha tenra, que precisa ser regada todos os dias para crescer forte e saudável. O Senado Galáctico de Star Wars não soube regá-la. Nós também não.
Assistindo pela quinta ou sexta vez ao episódio III (“A Vingança dos Sith”) — “maratonando”, como de costume antes do lançamento dos filmes novos no cinema — , fiquei a todo momento criando relações com a Alemanha de 33, com o Chile de 73, com o Brasil de 64, com a Turquia de 2017, com a Bolívia e até com o Brasil de 2019 — não de forma superficial e paranoica como muitos o fazem ao ver qualquer mancha de autoritarismo.
O Brasil goza ainda de sua democracia, e não creio que ela esteja em grande risco como creem muitos. No entanto, se afrouxarmos os cintos, se não pisarmos nos freios, se não permanecermos atentos, ela pode sim ter fim semelhante ao de todos os eventos que citei.
O mais extraordinário de Star Wars (e aqui se destaca o episódio em que Anakin se torna Vader) é a fidelidade com a qual as conspirações que sempre destruíram as democracias ao redor do mundo são retratadas no golpe perpetrado por Palpatine (Ian McDiarmid). Como o medo e o ressentimento são armas potentes nas mãos de quem busca o poder de formas desleais.
Mais que isso: Star Wars retrata como a corrupção política se dá em sua esfera mais perversa, que mistura interesses ideológicos e particulares espúrios, se emaranhando nos pilares das instituições públicas, se dissipando como praga ao explorar as fraquezas pessoais de seus alvos mais fracos.
E assim, assistindo aos prequels da saga novamente, pude ver, infelizmente, o caminhar brasileiro das vespas de um passado recente que pareciam extintas ou ao menos adormecidas. E como seu caminhar rejeita teorias de uma conspiração às escondidas ou de um autoritarismo insurgente: eles sempre estiveram no meio de nós, transitando por nossos salões, bem debaixo de nossos narizes, praticando suas artimanhas, seus negócios, suas tramoias, se relacionando publicamente com o crime organizado, incitando violência, implantando ódio e discórdia, à espreita do momento perfeito para o ataque final: a falha de outro grupo, nada melhor que os outros, que não conseguiu realizar seus sonhos de “poder ilimitado”.
No entanto, na trilogia clássica não vi o Brasil em momento algum. Vi de forma bem nítida o Chile de 2019, que, sem juízos de valor (quem sabe não vem um texto por aí que se dedique exclusivamente a isso), resistiu bravamente à repressão de um governo que, durante os primeiros meses, parecia não possuir mais nenhuma capacidade de permanecer no poder. Vi os franceses, que brigam por suas exigências independente de quem esteja no comando. Vi os alemães, os espanhóis, os catalães, os gregos, os honcongueses e diversos outros povos, até o brasileiro de outras datas, mas não o de 2019, a não ser no plano do discurso.
E, por isso, minha interpretação, ao comparar Brasil e Chile, é o que extraio de diversos filmes de Star Wars (sobretudo nos detalhes de percepção dos efeitos do Império e da Primeira Ordem em diferentes planetas): um povo que conhece a liberdade, que conquistou a liberdade a duras penas, com sangue e suor, conhece o valor dessa palavra, e, diferente de um povo que não a conhece ou que nunca a tenha conquistado de forma tão plena ou incisiva, nunca a coloca a perder, pois ao gozar desse princípio, sabe que a liberdade é o mais urgente valor que pode cultivar uma sociedade, seja ela qual for.
Já dizia Churchill pelos idos de 1940, um homem que não considero tão democrático quanto intentava parecer, que “a democracia é o pior sistema de governo que existe, à exceção de todos os outros”. Essa frase resume de forma primorosa a realidade mais objetiva da democracia: o caos controlado, a divergência (não discórdia), o embate, o pluralismo, que parecem muitas vezes prolongar problemas e não deixar que soluções rápidas vigorem, mas que são ainda o sustentáculo político mais bem sucedido já criado para uma sociedade que inspire um mínimo de respeito, dignidade e liberdade a todos os indivíduos.
Por isso, afirmo aqui que não precisamos de um novo Skywalker. O que o Brasil precisa é entender o que a Resistência finalmente entendeu em Star Wars: o valor da liberdade, e não só ele, mas os artifícios com os quais é possível manter e expandir a liberdade. O Brasil precisa com urgência evitar que figuras medonhas como Palpatine concluam seus planos de poder. O Brasil precisa entender a importância da democracia, das instituições e dos valores democráticos, da independência, da soberania, da normalidade, dos direitos e garantias individuais. O Brasil precisa enxergar a beleza das contradições, dos embates, da evolução, da inovação, do caos controlado que toda sociedade que vive o prazer pujante da democracia experimenta.
Foram esses valores que equilibraram finalmente a força, que restauraram a paz, a liberdade, a dignidade; não as aventuras de figuras personalistas e controversas.
De Skywalkers já estamos cheios: personalidades muitas vezes narcisistas, irresponsáveis, guiadas por fortes emoções e em vários momentos completamente desequilibradas, que acreditam ser os únicos capazes de realizar os feitos para os quais se dedicaram (Leia não tanto, mas Anakin, Ben Solo e até Luke se inserem nessa descrição, que me faz querer refutar todas as afirmações de que Star Wars se centra na importância dessa família que ofereceu mais guerra do que paz).
Enquanto o Brasil permanecer em busca de um líder forte e heroico, que carregue em si todas as respostas que precisamos — e aqui podemos citar de Lula a Bolsonaro, passando por dezenas de outros aspirantes — não haverá força jedi capaz de restaurar o que há poucos anos vem sendo destruído por todos os lados.
Definitivamente, não precisamos de super-heróis; o que precisamos é resgatar um conjunto de valores que parecemos ter perdido em meio às incansáveis batalhas entre coxinhas e mortadelas. E a prova mais certeira disso em Star Wars é que (alerta de spoiler), para a surpresa de muitos, não foi um Skywalker que trouxe o tão buscado equilíbrio, mas sim uma Palpatine.