Negociação do Afeto

Kenia Mattos
Revista Subjetiva
Published in
3 min readApr 6, 2020
Unplash — Ricardo Velarde

Ser uma mulher negra é um constante questionamento de si mesma e de sua validade em diversos níveis. Falar “a mulher negra isso” ou “a mulher negra aquilo” soa para mim como um vocabulário de militância, a qual eu não participo. Mas é impossível narrar parte de nossas vivências enquanto mulher, sem fazer esse recorte e sem se auto localizar neste espaço que ocupamos no mundo.

A vida de uma mulher negra desde a infância é marcada por uma trajetória de negações e também de concessões para uma vida com menos feridas em nossas mentes e corpos. É uma constante negociação de sonhos, e de afeto.
Na escola, observamos nossas coleguinhas brancas de sala serem as desejadas enquanto nós sempre ficamos naquele papel amassado, da lista das mais feias. E a nós? Cabe aquele desejo mudo e murcho de sermos como elas, termos seus cabelos lisos que voam e se balançam com o vento. Sermos as que apelidam de “fofas” e não sermos o personagem principal da reunião de meninos que discutem, sobre quem vão “comer e largar”.

Perceba o peso destas palavras. O “comer” nos é designado e isso me lembra de nossa história que começou na escravidão. A comida, fonte primordial da vida, só chegava na mesa de senhores e na barriga de homens escravos, por nós. Mais uma vez, as mulheres negras sempre sendo o cerne do mundo e nutrindo homens de diferentes raças, com afeto e condições físicas para o trabalho. Dupla jornada de trabalho.

Já adultas, quando conseguimos sair deste ambiente tóxico que é a escola, nossas experiências sexuais são marcadas pelos testes de homens educados pela indústria pornográfica sobre nossos corpos. Toda a violência apreendida nos vídeos, é despejada sobre nós. Nossos órgãos sexuais são vistos da mesma forma que nossos corpos: Escuros e marcados para servir.

Enquanto mulheres brancas tem a vivência e experiência do relacionamento monogâmico, do matrimônio ou da construção familiar, ainda estamos lutando pela experiência de apenas conhecer, uma relação que não seja exclusivamente casual e sexual. Falar sobre nós é falar sobre toda uma vida de afeto negado. Afeto básico.

O carinho no rosto e nos cabelos. As mãos dadas, os passeios em público.
Os filmes e a indústria audiovisual massiva, escancaram em nossas caras tudo aquilo ao qual nunca tivemos acesso.

Ao finalmente termos a chance de estar na presença de alguém que não está exclusivamente interessado em testar aprendizados pornográficos em nós, inicia-se um processo árduo e muito doloroso de desapego do medo.

Como viver em harmonia, como envolver-se e viver um amor genuíno, se anteriormente só tivemos experiências de invalidação de nossas personalidades e mercantilização de nossos corpos?

Como transformar toda a violência sofrida ao longo de anos, em amor a si e ao próximo? Principalmente quando este próximo é um homem também negro, com toda uma vida marcada pela vigilância governamental e políticas de morte e aniquilação.

Um indivíduo com medo de uma experiência nova, está quase que todo o tempo em posição de observação e negação. Ele se protege.

Se você largar alguém em uma ilha deserta, e simplesmente aparecer um outro alguém nesta ilha, a posição da primeira pessoa vai ser de total proteção a si mesma, e por vezes isso significa fuga.

O medo além de nos tornar mulheres amedrontadas, e em palavras simples “mulheres com medo de serem amadas”, nos torna ásperas. Mas é claro. Nunca fomos preparadas para receber o amor!

Pessoas com medo não tem segurança, estão sempre em negação, são apegadas a detalhes e qualquer curva fora da estrada parece ser algo a ser temido. Afinal, o medo da perda torna-se presente quase que de forma automática. E lhes deixo a pergunta: Como ser uma mulher confiante e viver a plenitude do amor, quando se foi ensinada por toda uma vida que este sentimento não é para pessoas como você?

--

--

Kenia Mattos
Revista Subjetiva

Diga-me com quem tu andas e te direi quem é seu parsa. Escritora nas horas ocupadas.