Neide não aguenta mais higienizar as compras e se revolta

Victor Hugo Liporage
Revista Subjetiva
Published in
3 min readMay 21, 2020

Neide tá de saco de cheio de fazer tudo sozinha “nessa porra dessa casa”. Grita a 85 decibéis que “agora as coisas vão mudar” e toma uma postura.

A partir de amanhã, irá instaurar um processo seletivo para higienização das compras do mercado.

Bolsa auxílio: live de toda e qualquer outra tarefa doméstica. Benefícios: vale refeição, roupa lavada e passada.

1ª entrevisa: Mauro, o marido

“Eu realmente não vejo necessidade disso, Neide.”

“Ouço isso há 27 anos do nosso casamento, Mauro. Principalmente de madrugada. Já chega. É preciso mudar. Me fala: quais suas habilidades?”

“Não vou entrar no seu joguinho.”

“Mas a tua máscara tá lavada todo dia com cheirinho de Johnson’s Baby porque o Vanish te enjoa, né, Mauro? Teu camarão é descascado, né, Mauro? Tua descarga mal dada eu que dou, né, Mauro?”

“Fala baixo, Neide. Vizinho ouve.”

2ª entrevista: Agatha, a caçula

“Eu tenho uma metodologia de separação de frios, hortifrutigranjeiros, embalados e latas.”

“Bom. E o material pra limpeza?”

“Costumo pegar qualquer panin-”

“Como?”

Agatha olha com tensão pra mãe, boca ainda entreaberta e calculando mentalmente o perigo de suas falas. Neide a fuzila com o olhar.

“Qualquer paninho, mãe.”

“Entro em contato com você.”

3ª entrevista: Samuel, o primogênito

“Vem cá, mãe: nos benefícios, tá incluso uso intermitente da internet e direito de porta do quarto fechada?”

“Isso é um processo seletivo ou uma negociação, Samuel?”

“Mãe, eu tô de home office. Não é pra ficar jogando, não, cara.”

“Trabalho até tarde, pego metrô lotado, faço pilates por causa do metrô lotado, chego em casa, faço tua comida, lavo tuas cuecas (que às vezes vêm sujas de merda) e você não aguenta fazer home office e limpar teu quarto?”

“Tu já viu minha cadeira, mãe? Nem pilates salva minha lombar!”

“Enquanto viver sob o meu teto, as regras são minhas. 27 anos na cara, usando minha internet fibra ótica e ainda reclama de lombar? Sabe, Samuel, acho que meu erro foi não ter te obrigado a comer quiabo…”

4ª entrevista: Luan, o namorado da Agatha que não volta pra casa nunca

“Luan, meu querido, antes de tudo, uma pergunta: seus pais não tão preocupados com você, não, meu filho?”

“Eles disseram que tá tranquilo, Dona Neide.”

“Sei.”

Luan sorri amarelo. Neide retribui, num amarelo escuro.

“Então, me fala sobre seus objetivos…”

“Acho que começar pelas carnes, né.”

“Não, digo pra daqui a umas semanas.”

“Ah, a senhora diz de voltar pra minha casa?”

Neide sorri amarelo escuro de novo.

“É que se eu for embora, dona Neide, não vou poder voltar. Mas eu me conheço, vou querer voltar, vou furar a quarentena e vão me cancelar no Twitter.”

Neide sorri, mas um sorriso triste.

5ª entrevista: Livia, a do meio

Livia deposita sobre a mesa um rolo de perfex, um álcool 70% e quatro alimentos: banana, lata de leite condensado, meio quilo de macarrão e meio quilo de frango.

“Que isso, Livia?”

“Minha mãe me ensinou que atitudes valem mais que palavras.”

Neide faz bico, impressionada.

Livia tira o frango do saco e bota imediatamente em uma bacia de água. Higieniza a mão com álcool, depois esguicha álcool no perfex e higieniza o saco do macarrão e a lata.

Mas quando chega na banana, para. Abre uma notícia e recita detalhes do procedimento da limpeza de frutas e legumes. Livia foi perfeita.

“Uau. Parabéns, Livia. Você só esqueceu de uma coisa: nessa casa não entra leite condensado. Já viu o índice da glicose do seu pai? E eu sou diabética tipo 2. Se não sabe, deveria saber. Você quer que a gente morra?

Livia está em choque. Neide bufa.

“Quer saber, que se foda. Só eu mesmo dou conta dessas coisas. Deixa que eu limpo.”

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