Notas da bílis em terras devastadas

Aforismos

Felipe Moreno
Revista Subjetiva
4 min readMar 31, 2021

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Filosoficamente, os tecnocratas do Vale do Silício rumam pelo caminho oposto de um Sêneca ou de um Buda: têm especializado a miséria humana. Do budismo, pegam emprestado as práticas meditativas e distorcem seus objetivos; meditam por interesses exclusivos: querem mais desempenho, produzir mais, ter mais eficiência. Do mesmo budismo que tanto admiram, são incapazes de aceitar e assimilar a lição primeira dessa tradição: a realidade da velhice, da doença e da morte. Por isso continuam alimentando seus terrores e perseguindo seus desejos infelizes e irrealizáveis: querem migrar as próprias consciências para os computadores e, assim, se tornar imortais no universo digital. A mais esdrúxula metafísica, criada por um charlatão que se diz profeta, é infinitamente mais sofisticada que a “metafísica digital” que os tecnocratas têm empreendido em nome de seu terror da finitude.

Todo avanço técnico-científico fulminante esconde uma angústia e um desespero.

A Terra é tão generosa com a nossa espécie. Fosse mais rigorosa, teria nos aplicado golpes terríveis (em formas de catástrofes) desde a primeira vez que inventamos escavar a atmosfera para extrair matéria fóssil (resguardada nas profundezas há milhões de anos) com o objetivo de produzir eletricidade, velocidade, plástico. Apenas pelo mal do plástico, a Terra, não fosse tão compassiva, poderia, de imediato, nos castigar. Mas nós, que não aprendemos com a compassividade da Terra, estouramos todos os limites: a resposta, em formas de tormentas, já está encaminhada. É provável que, mesmo depois de tudo, não aprendamos a lição. Dada a infinita imbecilidade do tipo de ser humano que se criou nos últimos quinhentos anos, é capaz que a última pessoa viva no planeta — ou os poderosos, encapsulados em aeronaves -, assistam a ruína da vida e, atônitos, se questionem: “Meu deus! Que mal fizemos?”.

Uma pessoa que adormecesse na Europa em 800 e acordasse em 1200 encontraria praticamente o mesmo mundo: a densa cultura medieval, nas suas sujeiras, superstições, arrebatamentos. Para alguém que caísse num sono de séculos na América pré-colonial, idem: deslumbraria a mesma exuberância das florestas, os politeísmos, as caças, as liturgias dos povos. Em contraste, uma pessoa que dormisse em 1920 e acordasse em 2020 não reconheceria quase nada: se sentiria um corpo renascido das catacumbas diante de uma civilização alienígena. Afinal, qual a origem do desejo de avanço técnico fulminante, esse advento da modernidade? Progresso: eufemismo para fúria, avalanche, força que varre a possibilidade de uma época nascer, desabrochar, culminar e fenecer num tempo natural, saudável.

Depois do nazismo, calcado na ilusão nefasta da eugenia, a história do capitalismo é a mais torpe que a humanidade já concebeu: humanismo complexado, assentado em fissuras narcísicas, a narrativa liberal foge, a todo custo, da realidade da morte — por isso se afunda no materialismo abjeto, no louvor à técnica e à eficiência, no fetiche ao consumismo. Grosseira da raiz à superfície, a sociedade de mercado permitiu um tipo de alienação humana sem precedentes na história: o de querer superar e triunfar sobre os ciclos vitais da Terra.

A história da filosofia ocidental moderna é a da anti-sabedoria intuitiva: racionalizaram e sistematizaram um mundo que nunca precisou de racionalização e sistematização. As sabedorias de Kant, Hegel, Heidegger e Sarte somadas não conseguem ser mais luminosas que um devaneio pueril de um xamã da floresta brasileira. A real sabedoria — compreensão profunda e clara do que é a vida — é aquilo que os ocidentais relegam à categoria de misticismo.

O homem branco, atolado em prolixidades, não pode entender o que diz o índio porque o índio diz o óbvio: está tudo interconectado; o ser humano que destrói a floresta destrói a si mesmo; a Terra é como nossa casa. A maior ignorância do homem branco é subestimar o óbvio.

A espécie humana estará acabada quando a biosfera, respondendo aos ataques que cometemos a ela, nos triturar. Ou então quando alguns poucos plutocratas, superando as fúrias da Terra, sobreviverem encapsulados em redomas artificiais. Se não houvesse escolha para além das duas opções trágicas, confesso que preferiria a primeira: para a vida, seria duplamente trágico, depois de tudo, ainda ter que abrigar um bando de Elon Musks.

Paradoxo da modernidade: quanto mais os humanos pensam que a história evolui, mais a civilização se afunda no buraco. (Buraco metafórico e literal, pois também representa a escavação da terra em busca de riquezas.) Se a história não é cíclica, ela é qualquer outra coisa, menos progressiva. A fundação filosófica que surgiu na Europa há cinco séculos é, dentre tantas coisas, a ilusão dos rumos da história. À esquerda e à direita, do iluminismo ao marxismo, sustenta-se a ideia mirabolante e perigosa do tempo que avança. Nietzsche, apesar de toda a sua histeria, foi o primeiro, dentro desse reduto eurocêntrico, a ir além: seu eterno retorno resgata a consciência do círculo primordial onde todos os seres estão inseridos. Mas o liberalismo exige desenvolvimento. A dialética, seja hegeliana ou marxista, está sempre pautada pela luz no horizonte. Crassa ilusão: a dor e a limitação de ser regido pela ideia “primitiva” de que deuses controlam o cosmos é imensamente mais saudável e apaziguadora do que a agonia de ser escravo do imperativo no qual, a cada ano, a economia deve crescer.

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Felipe Moreno
Revista Subjetiva

Haicaísta com ternura, prosador com afiação (e vice-versa). Autor de “o bambu balança” (Bestiário, 2022): https://tinyurl.com/36r2kc4j