O 8 de março e as origens socialistas
O dia 8 de março tem gerado em muitas mulheres aversão e descrença devido a onda de hipocrisia que toma conta dessa data. E essa revolta não é por menos, se pararmos para pensar que durante todos os dias do ano as mulheres são violentadas e desrespeitadas em qualquer âmbito da sua vida, reservando-se, porém, um dia para que o seu valor seja enaltecido. Valor este carregado de estereótipos atribuídos ao papel da mulher. De fato, não há como comemorar ser mulher em uma sociedade patriarcal que se omite perante a violência contra a figura feminina e contribui para que o status quo permaneça da mesma forma, corroborando para que o destino de mulher continue a ser infeliz.
Mas também o abandono e o desprezo pela data comemorativa não são a melhor via a ser escolhida. Devemos nos revoltar pelo que o 8 de março se tornou, pelo que fizeram dele. Por ter se tornado mais uma data banalizada pelo capitalismo e transformada em uma forma de lucrar. Agrados e gentilezas transvestidos em presentes, mensagens castradoras enaltecendo um arquétipo de “O que é ser mulher” e empresas dando enfoque a um empoderamento individual e burguês. São essas situações que precisam ser rechaçadas, pois o capital conseguiu com isso tudo mascarar as verdadeiras origens socialistas do dia 8 de março.
O dia da mulher não foi proposto com um intuito supérfluo como se moldou hoje, mas sim como um dia de luta feminina. Ainda no final do século XIX, a líder socialista alemã, Clara Zetkin, propôs em uma II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, que fosse criado um dia em que as mulheres trabalhadoras de todo o mundo pudessem se mobilizar por melhores condições de trabalho e pelo direito ao voto. Em um contexto histórico onde as mulheres estavam ingressando no trabalho fabril e o desenvolvimento do movimento comunista ocorrendo, a intensificação de manifestações em favor de melhorias no trabalho das operárias, a ampliação e conquista de seus direitos civis e sociais se tornavam uma prioridade. E Clara Zetkin, como outras socialistas importantes, Alexandra Kollontai e Rosa Luxemburgo, foi uma que encabeçou a luta das trabalhadoras por uma vida digna.
A forma como o feminismo burguês está se apoderando dessa data é totalmente oposto ao pensamento originário socialista. Desde àquela época, por volta de 1909, tais líderes socialistas já deixavam bem definido a diferença da mulher trabalhadora e da feminista burguesa, e de seus interesses. Alexandra Kollontai sintetiza bem isso quando afirma: “A que aspiram as feministas? Aos mesmos privilégios, ao mesmo poder, ao mesmo direito que agora possuem seus maridos, pais e irmãos na sociedade capitalista. A que aspiram as trabalhadoras? À destruição de todos os privilégios de nascimento ou de riqueza. Para as trabalhadoras, tanto faz quem tem o poder de ser “patrão”: se é homem, se é mulher. Junto com toda sua classe, elas podem tornar mais leve sua situação de trabalhadoras”. Ou seja, os objetivos não são iguais e ainda são conflitantes, pois a burguesa nunca vai querer abrir mão de sua posição no sistema de dominação-exploração. Apesar disso, utilizam-se das mulheres trabalhadoras, fingindo união e busca por direitos universais, mas somente para o que as beneficiam, vendendo uma igualdade formal.
As mulheres trabalhadoras anseiam por mais que uma mera igualdade formal, pois ao passarem a vender a sua força de trabalho juntamente aos homens proletários, foram subordinadas ao capital, tornando-se o lado mais fraco, mais destituído de direitos dessa relação, sendo exploradas não só como trabalhadoras, mas também como mães e mulheres. Acabamos retornando à questão que comumente trazemos aqui: a libertação feminina das amarras do capital. Somente a emancipação através do fim da dominação política e econômica do capitalismo, vai permitir que as mulheres, como classe, uma categoria social, sejam livres. A simbiose que a autora feminista marxista, Heleieth Saffioti, traz como princípio estruturador da sociedade tem ligação direta com o assunto, pois o patriarcado-racismo-capitalismo, formaram um só sistema de dominação-exploração que beneficia somente as classes dominantes e consolida o poder do macho branco e burguês. Assim, a mãe, a mulher, a trabalhadora preta e pobre constitui o último nível nessa cadeia de poder, sendo as mulheres invisíveis.
Portanto, em vez de desmerecer o 8 de março pelo que transformaram dele, devemos resgatar a sua origem socialista e trazer para hoje a verdadeira preocupação que havia na sua criação: a busca por direitos das mulheres, trabalhadoras, mães, como um caminho para o fim da sociedade de classes. Devemos aproveitar a visibilidade que a sociedade e a mídia dão a essa data para que nossas reinvindicações sejam vistas e ouvidas. Por mais que algumas conquistas pelas quais lutaram as mulheres antigamente, como o sufrágio universal, foram alcançadas, ainda há muito a alcançar por nossas mulheres. Por mais que seja de extrema importância a costumeira apresentação da vida e obra de teóricas feministas, que servem de exemplo para as figuras femininas e base para a luta feminista, às vezes se torna necessário falar também de mulheres desconhecidas que sobrevivem a uma sociedade patriarcal e machista todo os dias, mas ninguém vê ou até mesmo ela não percebe. Apesar de Frida Kahlo ter uma história de vida emocionante e ser uma guerreira, também vale a pena nas rodas e encontros apresentar a vida de Suzana, por exemplo, moradora de Santa Cruz, empregada doméstica, que era violentada sexualmente e espancada pelo marido, e apesar de conseguir se divorciar, só teve paz quando ele morreu, pois continuava a persegui-la. Mesmo assim, aos 57 anos, está terminando a faculdade de Serviço Social, o que era proibida por ele, e conseguiu se divorciar, apesar de ameaças contra sua família. Mais uma mulher que venceu o medo e o machismo, servindo como um exemplo concreto e que conduz com a realidade de outras.
Assim como precisamos falar de mulheres que necessitam de que continuemos fazendo do dia 8 de março uma luta, como Andreza, caixa de supermercado e moradora da Taquara, que foi expulsa de casa pelo marido e proibida de ver os três filhos. Ou Ingrid, que é moradora da Cidade de Deus e vive em um relacionamento abusivo, que a diminui todos os dias. Elas servem como motivo para que continuemos a lutar por conscientização, por direitos, por empoderamento de uma categoria social. Quando nos unimos pelas mulheres da classe dominada, estamos nos unindo também pelos trabalhadores. Esse protagonismo dado a mulher se torna de suma importância, pois o patriarcado só traz prejuízos à classe trabalhadora. Como bem disse Alexandra Kollontai: “O dia da mulher e todo o esforço meticuloso e lento para promover a autoconsciência de classe nas trabalhadoras não provocam uma cisão, mas uma união da classe operária”.
Para saber mais
Este texto faz parte do nosso Especial: 8 de março.
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