O 8M e o resgate da narrativa feminina

Tamy Monteiro
Revista Subjetiva
Published in
4 min readMar 8, 2018
Foto: Dia Internacional da Mulher em 1917

8 de março de 2018

É difícil escolher sobre o que falar no 8M, primeiro porque são tantas pautas negligenciadas, tantos direitos alienados, tanto silenciamento que precisaria muito mais do que um dia para falar tudo. Segundo, porque é um dia de reflexão, de análise do quanto avançamos ou regredimos e do que podemos fazer a respeito. E aí fica mais complicado. Vivemos uma conjuntura de avanço da extrema direita e de fragmentação da esquerda, o que torna o quadro todo cada dia mais preocupante. Para a direita, mulher não é nem gente, imagine pauta. Para a esquerda, a prioridade é focar nas disputas de poder, na política partidária, em quem vai ser candidato a quê. E as mulheres? “Ah, essa pauta pode esperar! A verdadeira luta é a do proletariado! Primeiro a gente luta contra o capitalismo, depois derruba o patriarcado!”. É claro que isso faz mais sentido na cabeça de quem não sente na pele a opressão diária que é ser do sexo feminino, quem não sabe como a confluência do capitalismo com o patriarcado age nas jornadas duplas e triplas de mães que precisam criar seus filhos sozinhas, na cabeça do esquerdomacho que abandonou a cria para virar estatística — mais uma entre as 5,5 milhões de crianças sem registro paterno na certidão.

É um dia que pesa nos ombros — e deve pesar — pois traz junto consigo toda a trajetória histórica de luta das mulheres do mundo todo. É dia de lembrar que essa data não tem nada a ver com ganhar florzinha, chocolatinho ou beijinho de parabéns, que essa data tem origem socialista sim! Que remonta ao estopim da Revolução Russa, na figura das mulheres trabalhadoras que foram às ruas lutar por seus direitos, mulheres que já sabiam há mais de 100 anos que a verdadeira luta anticapitalista também é antipatriarcal — e é preciso acrescentar aqui que esta também deve ser antirracista. Então, se me entristece que parte da esquerda tenha esquecido dessa história, também me anima a falar repetidamente dela, falar todo dia, para todo mundo, mas falar especialmente hoje. 8 de março é uma data com origem socialista, é dia de luta das mulheres trabalhadoras do mundo todo, é dia de lembrar à esquerda que ela não existe sem a gente e à direita que nós somos sua maior ameaça.

Então, falando de história — e sendo eu uma historiadora — a primeira coisa que me ocorre para abordar no 8M é a necessidade do resgate histórico da narrativa feminina. A historiadora feminista Gerda Lerner defende que o estabelecimento do patriarcado não foi um evento, mas um processo histórico de duração de cerca de 2500 anos, durante os quais aconteceu o sequestro de tudo aquilo que remete ao feminino — divindades, palavras, contos, corpos, etc. Logo, temos milênios de narrativas para (re)criar, toda a História do mundo para (re)contar. É preciso colocar para fora, em palavras — faladas, cantadas, escritas, gritadas — tudo que guardamos por todo esse tempo. Todos os nossos saberes construídos com muita experiência e observação dos nossos próprios corpos; toda a ciência que nos foi negada e que mesmo assim inventamos, com métodos e fontes, de maneira autônoma; todas as nossas dores, as narrativas do estupro dos nossos corpos e mentes, do nosso adoecimento, do nosso abandono, da nossa solidão. É preciso explicar o mundo com novas palavras, fazer o mundo ver com os nossos olhos como essa sociedade adoecida não nos serve mais — na verdade, nunca serviu e nunca servirá.

8 de março é dia da Terra inteira ouvir a nossa insatisfação e a nossa exigência de uma sociedade mais justa, menos desigual. Vamos contar umas para as outras tudo que nos aborrece — da estrutura patriarcal ao mais “banal” –, de todas as vezes que nos chamaram de loucas; que sofremos assédio; que fomos alvo de racismo; que nossas roupas e/ou corpos foram censurados; que fomos proibidas de algo só por ser mulher; que nos sentimos envergonhadas, humilhadas, tivemos nossa autoestima estraçalhada; que tivemos direitos básicos alienados (alô, aborto!); que nossos corpos foram violados, mutilados, cirurgicamente modificados para o prazer masculino. Vamos falar de toda a violência e toda dor, entre nós, umas para as outras. Vamos sentir essa dor coletiva, compartilhada por toda essa classe sexual. Vamos olhar umas para as outras e nos ver na outra e nos ver em todas: na mulher negra, indígena, quilombola, ribeirinha, cabocla, do campo, da cidade, da rua, trabalhadora, pobre, periférica, dona de casa, mãe, deficiente, autista… em todas! E falando uma com a outra, em alto e bom som, o mundo inteiro será obrigado a ouvir e nos enxergar. E talvez, assim, percebam pela primeira vez que nós existimos, que somos gente e exigimos ser tratadas como tal. E se ainda assim não perceberem, que seja tarde demais para eles e já tenhamos começado, outra vez, a nossa revolução.

Este texto faz parte do nosso Especial: 8 de março.

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Tamy Monteiro
Revista Subjetiva

professora, militante feminista radical, apreciadora de cervejas, cafés e livros.