O aborto e o silêncio

Tamy Monteiro
Revista Subjetiva
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5 min readSep 27, 2017
Imagem da Marcha Mundial das Mulheres

Antes de entrar na militância feminista eu já conhecia mulheres que tinham abortado, já sabia de algumas histórias de colegas, rumores sobre conhecidas, mas tudo muito discreto, muito sussurrado pelos cantos. Assim que mergulhei de cabeça na militância, dedicando todo dia algumas horas para isso, comecei a me deparar quase diariamente com histórias de aborto, algumas estavam ainda em andamento, outras já eram histórias do passado que tinham deixado sequelas físicas e/ou psicológicas. Nesses relatos tinha de tudo que você possa imaginar: tentativas bem sucedidas, tentativas fracassadas, aborto feito à força pelo namorado/companheiro, desistências. Tudo, no geral, envolvendo muita dor, desespero e abandono. Eram poucos os casos em que tudo corria bem, com tranquilidade, sem traumas — e não preciso nem dizer que esses poucos casos se tratavam sempre de mulheres que tinham dinheiro pra realizar o procedimento.

Foram muitas narrativas que ouvi, não consigo enumerar… lembro de uma que me deixou muito mal: uma mulher perto dos seus 40 anos, com dois filhos, que decidiu abortar, comprou o remédio de fora do país, mas devido à demora pra entrega e o aumento do medo de não conseguir abortar a tempo — sabendo muito bem o que era ter que criar uma criança sozinha e estando exausta disso —, começou a dar socos no seu próprio ventre até o trauma iniciar o aborto. Depois de horas sangrando, estando toda machucada, se acalmou e foi pro hospital para fazer a curetagem. Pode parecer sangue frio pra quem ler sem se relacionar com a história dessa mulher. Para mim, que sou mulher, mãe e pobre, faz todo o sentido.

Quando você já conhece a solidão da maternidade é mais fácil entender essas decisões. A sociedade não se preocupa com a educação das crianças, a responsabilidade de criar filhos recai apenas sobre as mulheres. Ninguém lê esse relato e pensa “cadê o desgraçado que engravidou essa mulher e largou ela sozinha pra resolver isso?!”. Não se pensa que não deveria ser assim, essa mulher não precisava nunca ter passado por tanta dor e desespero pra tomar uma decisão tão simples. Pesa sobre nós, todas nós mulheres, a formação de um país conservador, com ideologia cristã e culpabilizadora.

As legislações de muitos outros países mais flexíveis a respeito dos direitos reprodutivos, como Alemanha, França, Portugal e Canadá — lugares onde a posição da mulher é “melhor” (ou menos pior), a diferença salarial entre os sexos é menor e o nível educacional das mulheres é mais elevado —, se amparam em ampla pesquisa científica para determinar a partir de qual momento existe vida consciente e, por consequência, até que momento da gravidez é possível retirar o feto sem que isso cause sofrimento ou seja considerado uma violência. No Brasil, a legislação ainda se sustenta sobre uma base moralista e cristã, insistindo em uma definição nada laica do que é vida e, ironicamente, encerrando prematuramente muitas vidas de mulheres — principalmente daquelas que têm menos acesso à escolaridade e melhores condições de vida, mulheres pretas e pobres.

Mas isso tudo já é sabido e não foi pra isso que comecei a escrever esse texto. Os argumentos a favor do direito de autonomia das mulheres sobre seu próprio corpo já são repetidos há décadas, não há nenhuma novidade, só o atraso moralista que ignora. O que me fez escrever esse texto foi a certeza de que no Brasil a principal lei que impera sobre o aborto é a lei do silêncio. Basta olhar o número de abortos que são realizados no país e sobre os quais silenciamos. Não silenciamos pra proteger as mulheres e permitir que elas o façam em paz. Não, muito pelo contrário. Silencia-se para fingir que não existe, para ignorar o problema real e urgente de saúde pública, de mulheres morrendo e sendo mutiladas apenas para manter a decisão de um grupo conservador que historicamente legislou para controlar nossos corpos: homens brancos ricos.

O silêncio que está impregnado nas casas mais tradicionais, mais conservadoras, mais cristãs. Porque o aborto é realizado por todas as camadas sociais, mulheres de todas as classes e todas as raças — a diferença está apenas na segurança durante o processo. O silêncio hipócrita dos patriarcas que obrigam suas amantes a abortar, para manter seus casamentos, em “defesa da família”. O silêncio dolorido das mulheres cristãs que por conta da pobreza e do abandono paterno se viram obrigadas a abortar, se sentindo culpadas o resto da vida e crendo que estão condenadas ao inferno. O silêncio frustrado das militantes, que mesmo que tentem formar redes de ajuda não podem ou não conseguem sair gritando aos quatro ventos tudo que pensam com medo de sanções e perseguições, afinal são tempos tenebrosos. O silêncio de todas as instituições, dos hospitais que recusam atendimento, das promotorias públicas que continuam a processar mulheres que abortam, dos tribunais que insistem em condená-las. Não o silêncio que protege. O silêncio que aprisiona, que abandona mulheres ao desespero, à sua própria sorte, às suas orações choradas em meio a sangue e lágrimas. O silêncio que transforma aquilo que deveria ser somente um ato de autonomia num ato sujo, condenável.

Esse silêncio que precisa ser quebrado, para que as pessoas consigam olhar para o lado e reconhecer que mulheres são seres humanos, com direitos sistematicamente violados, vivendo uma tortura histórica. É preciso encerrar essa tortura e esse extermínio e nós estamos longe, muito longe disso. O primeiro passo, tímido, é nos devolver o direito de decidir sobre o que fazer com o nosso próprio útero quando um óvulo for fecundado. Ainda vai ser pouco, mas vai ser um suspiro pro recomeço. Precisamos quebrar o silêncio e começar a falar, falar sobre o aborto, falar em todo lugar, falar até ninguém aguentar mais ouvir. E se ninguém quiser ouvir, então que comecemos a gritar. E que esse grito não pare mais, até que toda forma de violência pare também.

Fale sobre o aborto.

28 de setembro. Dia de Luta Pela Legalização do Aborto.

Este texto faz parte da Virada Pela Legalização do Aborto que ocorrerá entre os dias 26, 27 e 28 de setembro, promovida pela rede Ativismo de Sofá e pela Frente Nacional Pela Legalização do Aborto. Acompanhe tudo sobre pela #PrecisamosFalarSobreAborto nas redes sociais.

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Tamy Monteiro
Revista Subjetiva

professora, militante feminista radical, apreciadora de cervejas, cafés e livros.