O conforto das memórias

Ana Paula Vilela
Revista Subjetiva
Published in
2 min readSep 25, 2021
Photo by Inside Weather on Unsplash

O sofá estava na garagem. Depois de uns bons dias no melhor estilo almofada no chão, o pacote mal embalado carregava a promoção da Black Friday. Claramente mais bonito na foto.

Era tão leve que o elevador foi o menor dos problemas. Difícil mesmo foi fazer passar pela porta sem derrubar mais nada. As paredes não se esticavam para caber o novo móvel e seu montador-morador. Pé depois de pé, uns pregos a mais para reforçar, a última batida para tirar o pó. Lá estava. Dois lugares, estofado cinza, pés de madeira fajuta, ares de imponente por fora, espuma desconfortável por dentro. Dominava a sala.

A antiga sala, na verdade.

Por lá, ficou dois anos. Recebeu de tudo. Visitas de familiares, roncos, peles, cobertas, sêmen. Um sofá de família? Tão ousado quanto dizer que não, era garantir que sim. Algo no meio disso.

Presenciou os domingos preguiçosos, especialmente bonitos na luz sépia que invadia a sala no outono. O entra e sai era intenso, de gente rindo, sonhando, se espreguiçando. Vivia com pipocas escondidas nas dobrinhas, uma ou outra mancha de vinho, chá, café. Até de esmalte, daquela noite em que era só gargalhada de mulher e som de vidro gelado brindando.

De todas as memórias, se é que dá para escolher uma, a mais bonita foi presenciar o primeiro texto ganhar o mundo. O fluxo de palavras desabrochando, uma a uma, em uma frenesia de começos, fascínio, pouca edição. Uma leitura amiga, respiro. Enter. Palavras libertas.

Primeiro em texto, depois em som.

O desgaste da espuma era evidente e, após algumas tentativas de conserto, era cada vez mais difícil ignorar. Tenta daqui, ajeita dali, fica de um lado, fica de outro, compra mais almofadas. Demoraram para entender que o desconforto não iria passar. Era dali para pior. Em respeito às boas memórias, partiu.

Rumo à casa nova.

Cabia com folga no vazio da sala. O espaço era tanto que os dois lugares pareciam agora pequenos, mas ainda assim com sua carga de importância-única. O movimento era menor, ou melhor, mais seleto. Filho único, era mesa, cama, remédio e alento. Quebrou um pé. Protesto da solidão de móvel só.

Foi em uma manhã de outono que percebeu: a velha estante! Livros, quadros, até as velas em formato de cacto estavam de volta. Chegou mesa, fogão, banco e, por fim, as cadeiras amarelas. Nesse ponto, se questionou: estaria perdendo espaço, se diluindo entre esses novatos?

Ah, bons tempos! Espuma ereta, alinhamento. Chegava uma nova Black Friday, será que iria embora com esse evento?

Rack, tapete, puff, até parede cor cimento.

Permaneceu.

Músicas, suor, sêmen.

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