O Conto da Aia é real

Sim, infelizmente é real e isso não é novidade para ninguém. O romance distópico da Margaret Atwood não está tão longe das nossas vivências. E o estupro de Mariana Ferrer mostra bem o porquê.

Kamilla Schreiber
Revista Subjetiva
3 min readNov 9, 2020

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Arte por Juliana Lossio (@julianalossioart).

Em uma república chamada Gilead, onde o totalitarismo e o fundamentalismo cristão se fazem presentes em um governo teocrático, as mulheres são vistas como inferiores aos homens. São vistas como nada, como objeto, como lixo. Não possuem o direito a basicamente nada. Estudar é proibido. Aprender a ler é um ultraje. Livros foram jogados fora. Apenas homens ocupam lugares no poder e as mulheres que não são casadas com os governantes, ou atuam como empregadas da casa ou são estupradas para que gerem crianças em um lugar onde a taxa de natalidade está em crise.

Mulheres são oprimidas por serem capazes de gerar um filho. São obrigadas, torturadas, silenciadas, aprisionadas para que o sistema patriarcal presente nos valores cristãos continue a vigorar como uma verdade única. Não parece uma realidade muito distante da nossa né? No Brasil, uma mulher é estuprada a cada oito minutos. Só em 2018, foram registrados 66 mil estupros no país. E Mariana Ferrer agora faz parte dessas estatísticas.

No dia 15 de dezembro de 2018, Mariana Ferrer foi dopada e estuprada em uma festa em que participava como promoter. O caso foi levado à justiça, mas pouco foi feito. Mariana resolveu divulgar o crime em suas redes sociais que foram tiradas do ar, sua única fonte de ser ouvida. No dia 10 de setembro de 2020, o juiz alegou falta de provas e ainda disse que é melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente. No dia 3 de setembro de 2020, durante o julgamento, o empresário André Camargo Aranha, acusado de estuprar Mariana, foi considerado inocente, pois não havia como saber durante o ato sexual — abuso — que a jovem não estava em condições de consentir a relação — abuso — e por isso, seria um “estupro culposo”. O que obviamente não existe.

Estupro culposo foi mais uma forma de inocentar o homem branco e rico que tem o papel de instituir e fortificar o sistema patriarcal capitalista em nossa sociedade. Estupro culposo foi mais uma forma de mostrar para as mulheres que elas não possuem poder e não serão ouvidas. Estupro culposo foi mais uma forma de perdurar a ideia de que a culpa vai ser sempre da vítima. Estupro culposo foi mais uma forma de mostrar às mulheres que quem manda são os homens.

O caso da Mariana é só um entre milhares. Quantas mulheres pobres, negras, marginalizadas passam por isso e nem sequer são ouvidas, nem sequer recorrem à justiça por falta de recursos básicos. As mulheres sempre foram e continuam sendo oprimidas pelo seu sexo e sua capacidade reprodutora. Acrescem a opressão por meio de um gênero que se trata somente de estereótipos. As forçam a crer na feminilidade como inata. Colocam em suas cabeças que agradar homens é sinônimo de felicidade. As batem, as matam, as estupram, as silenciam e ninguém é culpado, ninguém é detido, nenhum homem sofre as consequências de suas atitudes. A culpa é sempre da mulher.

Você homem, que está lendo esse texto e está indignado com a situação, não acha que já está na hora de fazer alguma coisa? Que tal prestar atenção nas suas atitudes? Conversar com aqueles seus amigos machistas, cortar a amizade se for preciso. Que tal parar de pagar pau para homens famosos acusados de assédio sexual ou estupro? Temos vários exemplos: Robinho, Cristiano Ronaldo, Neymar, Chris Brown, Woody Allen… Que tal rever quais são suas referências como homem? Que tal votar em mais mulheres nas próximas eleições? Vocês sabem de quem é a culpa. O que vão fazer para mudar isso? Postar no Instagram, porque todo mundo está postando e depois nunca mais abrir a boca sobre violência contra a mulher?

A gente está no ano de 2020. Inocentar estupradores não pode mais ser uma realidade. O feminicídio, os abusos sexuais, os estupros, a pornografia, o tráfico de mulheres, a violência doméstica, a pedofilia, a discriminação, a falta de direitos, a submissão, o silêncio, não podem mais ser uma realidade. Não vão nos tornar uma Gilead. A justiça será feita. Eles não sabem da nossa força, nem do que somos capazes de fazer para sobreviver.

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