O curioso caso do Cara Legal™ não tão legal

Maíra Ferreira
Revista Subjetiva
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3 min readJan 16, 2018

Fui me atualizar em Black Mirror e, enquanto assistia USS Callister, pensei que a gente podia escrever uma tese sobre esse tipo específico de homem babaca que é o Robert Daly. Todas nós já conhecemos um Robert. Ele é tímido, meio introspectivo, meio fechado, talvez meio deslocado, meio estranho. Ele não se adéqua muito bem aos estereótipos de masculinidade. Nunca foi o pegador, pelo contrário, atravessou a vida tendo dificuldade de se aproximar das mulheres e das relações românticas (como todo mundo que não se adéqua ao padrão, aliás). Consequentemente, enfrentou inseguranças e questões com a própria autoestima.

Mas, num mundo que não ensina homens a entrar em contato com as próprias crises (ao contrário, ensina a resolver na força, na virilidade, no engole-o-choro-e-parte-pra-mão), o homem Robert ficou no meio do caminho. Não se sente apto a incorporar essa figura do homem másculo que é ao mesmo tempo uma máquina sexual e uma rocha sem qualquer nuance de sensibilidade, mas tampouco sabe acolher as próprias fragilidades e verbalizar os próprios incômodos. O homem Robert vive frequentemente em um universo fantasioso. Pode se esconder na internet, ser um troll. Pode escrever fanfics. Pode ser o clássico nerd dos fóruns e dos jogos (sim, The Big Bang Theory, estou olhando pra você). Mas, seja em que situação for, o que interessa é que nesse universo fantasioso ele tenha a chance de despejar todo o seu rancor e virar o jogo. Ali, é ele quem manda. Ele é foda. Ele beija (como o personagem de Black Mirror) todas as mulheres. Ele controla e domina todas as mulheres. Na vida real, o homem Robert pode, inclusive, ser um hater de mulheres. Pode fundar páginas anti-feministas. Pode enaltecer Bolsonaros. Pode sentir um enorme prazer em escrotizar mulheres com um ódio profundo que a gente sempre se pergunta de onde veio.

O que acontece é que o homem Robert se acha incrível por não ser como os outros caras. Ele se autodescreve como um cara legal. Diferente dos outros que tratam mulheres como objetos, que ostentam a virilidade como uma bandeira, ele não, ele é diferente, ele é um cara legal — e por isso mesmo ele merecia ser mais respeitado e valorizado do que efetivamente é. Quando as mulheres não enxergam isso, é porque são putas, burras, inúteis. É porque “friendzonaram” ele, é porque são imbecis que continuam correndo atrás dos caras errados e não valorizando ele — o verdadeiro e genuíno Cara Legal™, o cara que deveria ser tratado como um rei por não vestir a roupa de homem das cavernas que outros tantos homens vestem. Deveria ser ovacionado. O “rei do espaço”. E ai da mulher que não reconhecer isso. O cara legal não tolera rejeição. Ele se dói facilmente e entorna em qualquer mulher o ódio acumulado durante os muitos anos em que não conseguiu se aproximar de mulher nenhuma.

O cara legal não aprendeu a verbalizar, mas raramente resolve as coisas na violência como outros homens. Ele é mais sutil. Talvez ele te manipule. Talvez ele te desvalorize. Talvez ele te exponha na internet. Talvez ele pratique um gaslighting e te faça parecer a louca de qualquer história. Talvez — num futuro próximo ou distante — ele te coloque dentro de um jogo onde ele pode, finalmente, te controlar e te obrigar a fazer todas as vontades dele. Afinal, ele merece, ele é diferente dos outros, ele é um injustiçado, subestimado, raramente valorizado pelas mulheres — tão burras! — que não conseguem perceber que ele é um autêntico, genuíno, raríssimo Cara Legal™.

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Maíra Ferreira
Revista Subjetiva

Minha Carrie Bradshaw interior não resiste a uma divagação. Escrevo prosa, poesia e textões sobre o caos da vida. http://instagram.com/mairacomacento