O Esboço

Uma tentativa de trato com Deus

Julia Caramés
Revista Subjetiva
4 min readMay 7, 2020

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As semanas se embaralharam e se não fosse pelo insistente sol de outono invadindo todos os cômodos e marcando a troca das estações, eu padeceria no semblante confortável de quem agora vê a vida passar sem lá muita entrega.

Parei de contar os dias. Não porque quis, veja bem, há uma vida feita de espera e outra que deseja ser vivida. Há ainda a urgência na chegada que corre esbaforida contra o tempo, sai por aí atropelando qualquer pedaço de gente que vê pela frente e dá tudo de si pra cair exausta no chão depois. Metros rasos demais. Clima seco, não chove nem dentro nem fora. A ampulheta não provê melhora e a areia, o vidro e o movimento de escorrer os micro grãozinhos fracionários não passam de passatempo. O esboço é uma narrativa incompleta.

O problema é que nunca soube o que fazer com as faltas. Respirei finais felizes que evidentemente nunca existiram. Enquadro bem as cenas para que caibam em suas devidas caixas e só trabalho com prazos. Tudo é embalado com esmero porque cada época constitui uma propriedade e os ciclos precisam das suas definições. Se olho para trás e vejo que não preenchi uma das caixas quase morro de desgosto. Nunca lidei bem com o vazio.

Não há substituição. As combinações fazem parte de um microcosmos no qual eu não sou a diretora. Se o roteiro estivesse em minhas mãos, sabe que de comédia e de paixão as doses seriam tântricas. Não se pode pular as páginas sem o entendimento do contexto e deve ser por isso que não consegui me desfazer das bactérias que saltitam sobre minha cabeça inquieta. Eu que ando como engrenagem que só funciona se depositar doses pontuais de óleo, já não sei se acredito na hipnose das transformações. Cura xamã, sabedoria ancestral, geometria sagrada, visão das plêiades e técnicas de desarquivar informações do inconsciente, nada disso pode me salvar da pressa. Nada disso vai me ajudar a contabilizar as faltas.

O que confere a efetividade é a forma e não o conteúdo. Morrer para vencer no paraíso. Acertar a linha de chegada com a limpeza espiritual proporcional aos grandes feitos. Do homem e de sua obra. Eu sou grande fã de Godard, que me ensinou que qualquer um pode andar de bicicleta pelo apartamento pra esfriar a pressão dos pensamentos. Cinema que ensina delicadeza só pode ser considerado obra divina. Quando eu mudar de casa, toda semana vou fazer um arranjo de flor, fotografar frutas no sol, comprar lençóis novos e lembrar das miudezas que fazem a vida parecer mais bonita.

A essência em sua forma pura age no cerne do coração. Transmuta instinto e grava as sessões como códigos universais. Já a forma seduz como se nos envolvesse em um manto invisível, como se de uma só vez despertasse os cinco sentidos e as partes que já havíamos esquecido. Eu sempre me perco nessa parte, como se não soubesse a diferença entre a capa e o interior.

Acordar é o acordo que se faz com si mesmo. Um laço que é selado pela benção dos anjos. O encontro inevitável da lucidez com a paixão. A carta dos Enamorados. O destino a espreita na janela. Só se vê bem com o coração, eles disseram. Mas enxergar é uma outra história. Pode-se conduzir as faltas a uma nobre valsa que invoca o fim das desilusões. Esse é o protocolo.

O que me espanta é que não há clarividência capaz de me explicar o que se faz com o vácuo entre um momento e outro. A catacumba dos amantes cegos. O cárcere dos cupidos. O sussurro oculto que nada diz. Parece que sigo dando voltas, mas me acompanhe com atenção: tudo repercute, tudo reverbera, mas nada engata marcha, percebe? Me parece que Deus foi tirar um cochilo, porque esqueceu de me responder sobre as faltas, sobre a magia do amor e suas questões últimas.

Nesses dias de solidão me sinto endurecida, petrificada. Como se as águas que derramei outrora fossem espécie rara de tempero que confere a anulação da vitalidade, antes capaz de fazer malabares com os obstáculos que sempre se apresentaram com popa e circunstância. Há um ar imperialista pairando por aí e ele fede. Me lembra o azedo das rupturas abruptas e tudo aquilo que já esqueci.

Elencar as qualidades não me traria estrela dourada nem trato com Deus. Meus feitos foram só coisas. Acreditei que amei demais e deixei amar também. Foi daí que vieram as faltas. E isso não vai me fazer catapultar os meses em branco. Dormir sorrindo em sonho finito. O que é estranho, posto que ao encontrar aqueles cabelos negros e olhos feitos de matéria da lua tive quase certeza de que a alquimia do universo de fato existe. De que existe essa coisa de se encontrar e ser um numa conta que radicaliza a matemática. A energia brinca com os pares e aquela noite foi mais uma certeza pra registrar na parede da alma. Eu tive certeza, mas ele ainda não me reconheceu.

O fruto da idealização do ego é um fruto que se colhe apodrecido. Amor requer sabedoria e eu ainda não sei contar bem os passos sem acabar me perdendo no caminho. Porque tenho a pressa e ainda não entendi o que fazer com o sumiço do pai dos céus. A sabedoria é uma bússola.

Mas sei que há verdade nesse mundo. E se há verdade nesse mundo o ritmo cósmico confabula com quem tira pra dançar. Com quem se deixa dançar. O balé dos corações sedentos. Uma performance quase nada linear. Mesmo que eu ainda não possa o encontrar debaixo do sol, no meio da chuva, na rua deserta ou na noite cheia de gente. Mesmo que ele ainda não possa me ver. Enquanto as próximas estrelas acabam de nascer, eu vou aprendendo a meditar. Até que a mente esqueça de si, o corpo renove a pele e a boca volte a cantar.

Esse dia há de chegar.

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Julia Caramés
Revista Subjetiva

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