O “eu te amo” sai mais fácil por WhatsApp*

Vamos deixando para trás, pelo que parece, o atrito, as resistências pertencentes ao mundo palpável. E como consequência disso vamos perdendo também o Outro, o estranho, tornando-o abstrato.

Joanderson Moreira
Revista Subjetiva
5 min readOct 4, 2021

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Photo by Markus Spiske on Unsplash

Amor en red social, uma canção interpretada pelo jovem venezuelano Micro TDH, chamou-me a atenção essa semana pelo seu potencial provocativo. Ela nos mostra como as relações sociais vem se modificando. Como pouco a pouco estamos trocando o vívido, o corpóreo, o tato, pelo imaginado, o fictício. “Qué ironia. En redes sociales nos vemos bien pero aquí al lado estás tan fría…”. A canção soa como lamento de um jovem que ama, mas sente o seu amor agonizar diante da impossibilidade de concretude. Um fato que infelizmente não pretende se alterar tão cedo, ao contrário, promete se intensificar. Vamos deixando para trás, pelo que parece, o atrito, as resistências pertencentes ao mundo palpável. E como consequência disso vamos perdendo também o Outro, o estranho, tornando-o abstrato.

Não posso de jeito nenhum fazer o leitor pensar que limito a observação às redes sociais. Elas são integrantes de algo maior, um mundo digital que toma cada vez mais espaço no nosso cotidiano e que usurpa um tanto considerável do mundo tátil. Quando digo tátil, refiro-me ao vívido, as nossas várias percepções, abarcando não somente a linguagem verbal, mas também os gestos, as expressões, a linguagem corporal, o suor que da testa desce, a mudança na respiração, o impacto do choro do outro. O impacto que é a presença do Outro. A taticidade que para Byung-Chul Han é a “pluridimensionalidade e multiplicidade de camadas da percepção humana, da qual fazem parte não apenas o visual, mas também outros sentidos”. O mundo digital suprime tanto a taticidade, quanto o corpóreo. O toque inclusive, perde o lugar para o like. As expressões foram trocadas por emojis. O “eu te amo” sai mais fácil pelo WhatsApp, pois, o ambiente digital do smartphone é livre de ameaças, de intensidades, justamente porque não há o Outro ali, sua presença foi suprimida.

Na comunicação digital tudo fica mais rápido, as coisas são resolvidas com um único clique. Num passe de mágica. É tanta a eficiência e comodidade que se evita o contato com pessoas reais. Neste cenário, o mundo palpável se torna menos atraente e talvez cansativo. “A mídia digital leva o contraposto real”, com suas ruas, buracos e sinaleiras, “cada vez mais ao desaparecimento. Ela o registra como resistência”. Favorece com isso o Dinheiro, é seu ambiente perfeito, visto que a palavra “barreira” para o mercado financeiro soa como o fim do mundo. O dinheiro, isso precisa ser lembrado, perdeu também seu laço com a materialidade. Desde 1971 não possui mais lastro, e hoje nada mais é que um dígito no sistema. Tornou-se fictício.

A presença do Outro é aos poucos suprimida, e assim vamos nos afeiçoando a uma representação espetaculosa. As fotografias digitais são diferentes das suas companheiras mais antigas, as analógicas, nelas é permitido fazer acréscimos, mudar os tons, deixá-las mais vívidas. Já a realidade em comparação, surge mais desfalcada. O mundo digital é mais brilhante, rápido e repleto de possibilidades. Se é possível até pensar hoje na digitalização do cérebro, como é o desejo do bilionário russo Dmitry Itskov que, segundo a BBC, “promete dedicar seu tempo e fortuna para o projeto de transferir mentes humanas para um computador”.

O reino das belezas e alegrias se encontra bem próximo, na tela do computador, no smartphone, algo que faz inveja a qualquer cristão. É o paraíso do capitalismo e nele somos descolados da terra. Sobre esse aspecto separador, Guy Debord faz uma observação parecida em seu livro “A Sociedade do Espetáculo”, nele o autor diz que “tudo o que era diretamente vívido se afastou numa representação”. As mídias digitais são o auge, uma consequência talvez inevitável de um modo de vida que já operava na década de 60.

Com a exaltação do imaginário, ocorre a supressão de características inerentes ao plano vívido. O mundo das imagens é como o dos sonhos onde fica difícil ver rostos ou corpos. Não somente são recolhidas as diferenças como se passa a perder a noção do que é real e do que não é. São consequências assustadoras ao meu ver. Um bom exemplo é o ocorrido neste ano na reunião entre setores da indústria, Bolsonaro, Guedes e o STF. Lá ecoa a preocupação com a “morte de CNPJ”. Mas “CNPJ não morre, o que morre é o CPF”, pensamos assustados. O CNPJ e o CPF se confundem, são números num sistema e número é algo abstrato. Não falamos de pessoas, mas de números, como a comparação do número de mortes por Covid-19 com o número total de habitantes no Brasil a fim de minimizar a mortandade. Ou mesmo quando um prefeito escolhe liberar ou não liberar festas ou ambientes comerciais que agregam muitas pessoas baseando-se no número de leitos. Vidas que são geridas por gráficos e planilhas, essas vidas se igualam a qualquer produto, qualquer mercadoria. Percebe-se que algumas pessoas ficarão e outras morrerão, não passando de números na tela.

Em um texto passado falei sobre a necessidade do Outro existir para que haja amor. O império do mundo imaginário, abstrato, do digital retira as diferenças e impossibilita a formação de empatia. Não sentimos empatia por números e imagens. São abstrações, fantasmas. Mas há séculos o Amor resiste contra as investidas da Morte e do Controle. E é por causa dele [o Amor] que nos jogamos ao abraço e também vamos às ruas como numa guerra, enquanto podemos batalhar pelo que é nosso, enquanto a digitalização ainda não retirou os nossos corpos.

*Este texto foi publicado originalmente no dia 6 de agosto de 2020. Republicado agora na Revista Subjetiva com modificações.

Obras e links:

No Exame, Byung-Chul Han, ed. Vozes

A Sociedade do Espetáculo, Guy Debord, Ed. Revolta

Bilionário russo quer transferir seu cérebro para computador e ‘imortaliza-lo’

Com Bolsonaro no STF, empresário diz: ‘haverá mortes de CNPJ

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Joanderson Moreira
Revista Subjetiva

Filósofo (UEFS). Escrevo sobre filosofia, com ênfase em cultura e política. jomoreiraescritor@gmail.com