O extraordinário mora ao lado — Flipelô 2018

Carol Vidal
Revista Subjetiva
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3 min readAug 11, 2018
Clarice Freire, Renato Cordeiro e Saulo Dourado na mesa “Com quantos likes se faz uma literatura?” (Foto: Carol Vidal)

Novas tecnologias permitem mudanças profundas na forma de se viver e se relacionar. Culturas e pessoas vão se adaptando às novidades conformem elas são incorporadas, e hoje, na era digital, é impossível ficar entediada diante de tantas ferramentas e serviços surgindo. Nesse sentido, um abismo separa os primeiros escritores, lá no momento da invenção da escrita, para os de hoje. Porém, esses dois momentos na arte de contar histórias têm algo em comum — ou pelo menos deveriam ter: o espírito do maravilhamento.

É importante pensar a tecnologia como uma ferramenta a serviço da literatura, e essa foi a principal discussão da mesa “Com quantos likes se faz uma literatura?”, que contou com a participação dos escritores Clarice Freire (da página Pó de Lua) e Saulo Dourado, com mediação de Renato Cordeiro.

Com presença massiva de jovens na plateia, os convidados instigaram os ouvintes a verem a literatura como uma possibilidade, sim, desde que não se perca pelo caminho a originalidade intrínseca de cada um pelo simples desejo de vender mais e chegar a mais pessoas sem apresentar uma verdade. “Ocupar a própria voz” é essencial, como ressaltou Saulo.

“Like não faz literatura. Quem faz é o escritor.” (Clarice Freire)

A tecnologia não nos substitui enquanto contadores de história, porém, é preciso reconhecer as facilidades que ela apresenta para quem quer fazer literatura hoje em dia. Não é preciso mais depender apenas das editoras para se lançar no mercado, quando há à disposição ferramentas de autopublicação e redes sociais. Dessa maneira, desde que se entenda o lugar da internet como trampolim para chegar aos leitores, ela pode ser útil. Está nas mãos de cada um fazer bom uso das ferramentas à disposição.

Estarmos conectados em rede também permite que se rompam barreiras, dando voz a artistas de outros lugares que não o eixo Rio-São Paulo. Clarice Freire é pernambucana e Saulo Dourado, baiano, e essa diversidade de vivências e sotaques só tem a enriquecer o cenário literário brasileiro. Há muitas vozes em cada canto desse país prontas para contar histórias de diferentes perspectivas.

Os likes, nesse contexto, servem para tornar a literatura real ao fazer com que ela se espalhe e chegue a mais pessoas. Eles não são um fim em si, mas um recurso que, assim como tudo, precisa ser bem utilizado. Até porque, mesmo com todas as facilidades da internet, não é fácil fazer e viver de literatura no Brasil. Nós ainda temos muito o que caminhar para formar mais leitores e ter mais incentivo, e isso passa pela educação, que carece de melhorias por aqui.

Durante todo o debate, analisei a minha própria caminhada na tentativa de fazer literatura. Não dá para negar o quanto é frustrante quando os textos não ganham a expressão desejada, e parece injusto que boas histórias não alcancem a um público maior. Por isso é reconfortante ver colegas escritores lembrando do que realmente significa fazer literatura e do quanto a arte é uma ferramenta importante para passarmos pela vida. É preciso ter sempre em mente o que se quer enquanto produtores de literatura, para não se perder em meio a números vazios.

Esse é também um lembrete que, enquanto escritores, somos caçadores do extraordinário, e ele está em cada pequena coisa, como um palito de fósforo, por exemplo. Não podemos perder essa capacidade de olhar para a vida de modo admirado, sob o risco de nossa literatura se tornar pobre ou superficial. Assim como é importante, enquanto leitores, que valorizemos os escritores contemporâneos, aqueles que escrevem sobre o que vivemos agora.

“O escritor tem que viver como a gente para contar as nossas histórias.” (Saulo Dourado)

Nós somos uma espécie diferente das outras pela nossa capacidade de contar histórias, e isso não é algo que uma tecnologia possa ensinar ou reproduzir. A capacidade criativa do ser humano não tem limites e mesmo hoje, na era dos likes (ou do lacre), não se deve perder de vista a essência do que é escrever.

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Carol Vidal
Revista Subjetiva

Carioca que mora em Salvador. Escritora e podcaster que ama cozinhar (palavras e comidas). Conheça meu trabalho: linktr.ee/carolvidal_