“O Farol” apresenta sem pudor o inferno que existe dentro de nós mesmos

Andressa Faria de Almeida
Revista Subjetiva
Published in
3 min readDec 16, 2019

Não é sempre que isso acontece, mas as vezes o cinema nos brinda com experiências totalmente imersivas, sinestésicas. O foco é no que somos levados a vivenciar dentro de nós mesmos e como isso repercute nas nossas vidas, deixando um pouco de lado o enredo apresentado ou os caminhos por ele tomados.

Curioso perceber que um dos últimos filmes que assisti que seguiam essa premissa foi “Bom Comportamento” (leia aqui a minha crítica), protagonizado por um Robert Pattinson já maduro e bastante competente, que alcança seu ápice no instigante “O Farol”.

A história é simples, justamente porque não é ela que deve ter nossa atenção e holofotes dessa vez: dois guardiões buscam se manter lúcidos enquanto cuidam de um farol, localizado em uma ilha deserta na Nova Inglaterra do final do século XIX.

A trama nos é apresentada rapidamente e a princípio não intriga tanto quanto o formato quase quadrado escolhido para a tela e o tipo de preto e branco apresentado, altamente contrastado e granulado, nos inserindo em uma fotografia tão suja quanto as intenções de seus protagonistas.

Essa sujeira se materializa e potencializa a cada cena, relacionando-se com os corpos dos nossos condutores e com seus sentimentos. Desejo, ira, medo e confusão são pontuados com toda a sorte de escatologia humana e é impossível ignorar a metáfora a nós ofertada por Robert Eggers: uma alma contaminada adoece todo o organismo ao qual pertence e ambiente no qual se insere.

A medida que a loucura se torna a regra das relações (com eles mesmos e entre si) desses personagens a casa onde residem, a praia onde trabalham e o mar que os isola se mostram cada vez mais insalubres e hostis. Não é por acaso que de igual forma também se potencializa a presença do sexo e da violência nos takes elaborados, sendo reconhecidos pelo longa como meios comuns à nossa natureza de se extravasar.

A visceralidade colocada no filme não se limita ao que vemos, mas se estende também ao que ouvimos. O design de som aqui é trabalhado com elementos repetitivos, mas absurdamente perturbadores e com o passar do tempo (e ele se perde para nós e para Thomas e Ephraim) vai se mostrando mais incômodo do que nunca.

Sem que percebamos todos os nossos sentidos são estimulados em direção à insanidade magistralmente trabalhada por Willem Dafoe e Pattinson, que abraçam sem medo protagonistas profundamente contraditórios e erráticos, mergulhados em uma intensa disputa por poder, sobrevivência e clareza.

O surrealismo crescente na projeção vai ganhando notas que nos lembram o expressionismo alemão e as obras soviéticas do início do século passado, de fato, mas é difícil não enxergar o novo trabalho de Eggers com a originalidade que ele merece.

Por mais que ele beba de fontes realmente consolidadas a verdade é que nada do que se oferece é óbvio, e mesmo o gênero aqui homenageado não se mantém só. Se há terror (e há, mas não convencional, assim como em “A Bruxa”) também há humor e drama, que contrapõem a decadência e a perdição humana expressas literalmente na sua impactante cena de encerramento.

O Farol” é um longa principalmente de sensações e de reflexões. Chega aos cinemas com o claro objetivo de acender as nossas maiores dúvidas e os nossos maiores medos, sobre os que nos rodeiam e sobre nós mesmos. Se “o inferno são os outros” (já diria Sartre) ele também pode morar na nossa mente e nos nossos anseios e encarar essa verdade nunca é agradável!

Nota: 9,5

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