O individualismo característico do capitalismo em tempos de pandemia

e o aprofundamento das desigualdades operadas pelas políticas neoliberais

Pedro Vinicius Paliares de Freitas
Revista Subjetiva
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7 min readNov 9, 2020

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Este é um simples e sucinto trabalho de conclusão de uma das disciplinas que cursei na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), no curso de Ciências Sociais. Todas as referências e citações contém o nome da publicação e/ou autor e ano de publicação, sendo assim, acessíveis através do Google Acadêmico ou outros sites de artigos científicos/livros.

1. A construção da base individualista do capitalismo

A transição para uma sociedade fundada em relações essencialmente capitalistas foi um processo histórico longo, que envolveu a transformação concomitante de toda a cultura ocidental(MACFARLANE, 1989).

De fato, a transição do feudalismo europeu para o mercantilismo característico do colonialismo dos séculos XV, XVI e XVII e, eventualmente, para o capitalismo originário do pós-Revolução Industrial inglês é um processo longo, articulado e complexo. Esta citação, retirada do primeiro tópico do artigo “O império da concorrência, uma perspectiva histórica das origens e expansão do capitalismo”, de autoria do pesquisador Marcelo Weishaupt Proni, do ano de 1997, propõe uma reflexão aprofundada sobre o tema, através da análise da evolução do capitalismo e suas diferentes fases no tempo.

O que nos interessa neste breve texto de conclusão, no entanto, é como o individualismo fez parte desse processo de construção e de transição para o sistema capitalista, e como ele se faz presente contemporaneamente. Segundo Proni, o desenvolvimento dessa racionalidade individualista foi essencial não só para a construção do sistema, como também para “a construção da defesa capitalista pelo direito à liberdade e à igualdade (mesmo que formais)”.

Essa diferença se torna nítida quando analisamos a sociedade feudal: hierarquizada e naturalmente desigual, tendo como base a relação senhor/servo, que, além de ditar a propriedade da terra e os ciclos econômicos, também ditava seus movimentos políticos. O processo de construção capitalista rompe com essa tradição feudal a partir do momento em que introduz a ética do trabalho livre, da propriedade e do progresso material que, evidentemente, só se concretizaria séculos mais tarde.

Essa mudança de ética é operada pelo direito positivo, que garante a universalidade do direito do homem. Para compreender melhor este conceito, proponho uma visita à um dos trabalhos de Friedrich Hegel, “Linhas Fundamentais da Filosofia e do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado em Compêndio”, do ano de 1822, especificamente no parágrafo 209:

“[…] essa própria esfera do relacional, enquanto formação, que dá ao direito o ser-aí, que consiste em ser algo universalmente reconhecido, sabido e querido […]. Faz parte da formação, do pensar enquanto consciência do singular na forma da universalidade que eu seja apreendido como pessoa universal, no que todos são idênticos. O homem vale, portanto, porque ele é homem, e não porque seja judeu, católico, protestante, alemão, italiano, etc”.

O individualismo introduzido a partir dessa transição e da universalização do direito através do direito positivo, no entanto, não faz com que o capitalismo quebre as correntes de uma sociedade hierarquizada e naturalmente desigual, como o feudalismo, para construir uma sociedade capitalista que defenda o direito à liberdade e à igualdade de maneira idônea. Muito pelo contrário, o capitalismo, apesar de operar uma mudança social estrutural significativa, apenas altera as estruturas de dominação, coerção e exploração sociais.

Para compreender melhor como essa nova estrutura de poder e dominação criada pelo capitalismo se desenvolve e evolui ao passar dos séculos e diferentes paradigmas econômicos, mas ainda mantendo o individualismo característico, é necessário percorrer um longo caminho; visitar o berço do capitalismo, a Inglaterra do século XVIII, ou seja, o liberalismo clássico e, mesmo que brevemente, chegar aos dias atuais e ao vigente paradigma neoliberal. Para isso, utilizarei o próximo tópico.

2. Do liberalismo ao neoliberalismo

“A pedra fundamental do liberalismo costuma ser identificada com Adam Smith, mais especialmente com a publicação de “A riqueza das nações”, em 1776 — com certeza um dos livros mais reeditados e citados dos tempos modernos”. (MORAES; 2001, 5)

Smith, bem como outros pensadores do liberalismo clássico e, posteriormente, da escola liberal neoclássica, também, consideram que toda ação humana é reflexo de uma racionalização das perdas e ganhos. Em outras palavras, para os liberais, todos nós tomamos todas as nossas decisões racionais baseadas em quanto vamos ganhar com aquilo, e as decisões que apontam a maior probabilidade ou concretude de ganhos — ou a menor perda, em caso contrário — será, inevitavelmente, a decisão tomada.

Essa teoria sobre a natureza humana fica conhecida como utilitarismo, e ela defende que toda ação humana tende, no limite, a buscar a maior quantidade de bem-estar, com a menor perda possível. Essa teoria geral da natureza humana, orquestrada pelos liberais a partir do momento em que desvinculam a Economia da Política, em par com as ideias de livre-mercado e a ausência de interferência estatal nas relações mercantis, são a base do liberalismo clássico.

Assim, o individualismo característico do sistema capitalista se desenvolve logo no capitalismo originário (como usualmente se refere ao capitalismo inglês pós-Revolução). Após altos e baixos do sistema, o momento mais marcante se dá entre os dois maiores conflitos mundiais dos últimos séculos; as duas grandes guerras mundiais. Mais especificamente, em 1929, com a Grande Depressão e a crise econômica mundial.

Após esse momento de expressa falha no paradigma econômico liberal, e o abandono definitivo do padrão-ouro pelos poderes econômicos independentes, existe uma breve ruptura no paradigma liberal, após a Conferência de Bretton Woods, onde as teorias de John Maynard Keynes e Dexter White são aceitas e postas em prática, o que inicia, nas palavras de Proni o período de “Capitalismo ‘virtuoso’ dos anos dourados” (PRONI; 1997, 22).

Isso inicia um período de maior prosperidade nos países economicamente e industrialmente desenvolvidos, com a pressão dos partidos comunistas e da própria existência da União Soviética para melhores condições de trabalho, seguridade social e políticas de distribuição de renda. No entanto, as relações pacíficas entre as potências e a conciliação isso não se mantém por muito tempo e, em meados de 1970, através da obra de Friedrich von Hayek — então discípulo de Ludwig von Mises — o paradigma neoliberal se apresenta ao mundo. Hayek ataca fortemente a escola keynesiana de economia — até então, o paradigma vigente — e demoniza o Estado de bem-estar social, bem como as políticas de seguridade social e distribuição de renda (para ele, o chamado “Estado-providencia”).

Assim, o neoliberalismo se estabelece, fortemente baseado nas premissas clássicas dos liberais e, através de suas reformas, devolve ao mercado o controle sobre o capital, que durante os anos “virtuosos” do capitalismo havia sido controlado minimamente pelas rédeas civilizatórias do Estado. Devolvendo a cada qual o “individualismo” capitalista, que seria novamente tutelado pelo mercado, através das supostas livre-concorrência, igualdade e liberdade.

3. O neoliberalismo brasileiro durante a pandemia

“Para os países latino-americanos, os neoliberais fazem uma adaptação dessa cena: aqui o adversário estaria no modelo de governo gerado pelas ideologias nacionalistas e desenvolvimentistas, pelo populismo… e pelos comunistas, evidentemente. A argumentação neoliberal tem uma estratégia similar à do sermão. Primeiro, desenha um diagnóstico apocalíptico. Em seguida, prega uma receita salvacionista: forte ação governamental contra os sindicatos e prioridade para uma política anti-inflacionária monetarista (doa a quem doer) — reformas orientadas para e pelo mercado, “libertando” o capital dos controles civilizadores que lhe foram impostos por duzentos anos de lutas populares” (MORAES; 2001, 14).

Essa contextualização histórica sobre a origem do sistema capitalista, do liberalismo clássico e do processo de transição entre os paradigmas econômicos para o estabelecimento definitivo do neoliberalismo nos remete à contemporaneidade. O Brasil atua sobre a crise sanitária causada pela pandemia do novo corona vírus através de políticas neoliberais, isso pressupõe austeridade fiscal, corte de gastos governamentais através de políticas monetárias anti-inflacionárias e reformas orientadas para e pelo mercado — assim como citado por Reginaldo C. Moraes no trecho referenciado anteriormente — como, por exemplo, a reforma trabalhista e a mais recente reforma previdenciária.

Essas reformas, no entanto, ocorreriam com ou sem pandemia, com ou sem crise econômica. O que deve ser brevemente citado neste desfecho é como as políticas neoliberais atuam ativamente para o aumento exponencial da letalidade e da taxa de infecção do novo corona vírus no nosso país, através do superlativo do individualismo capitalista, mesmo no mais desumano dos contextos. Isso se faz presente não só na falta de suporte e seguridade garantidas pelo governo federal para os milhões de desempregados, trabalhadores informais e microempresários, mas também no descaso para com a população mais vulnerável; pobres, moradores de comunidades carentes, que muitas vezes não têm acesso à agua tratada ou estrutura de saneamento básico, e também a população em situação de rua.

Além da imensa dificuldade da aprovação do programa de Auxílio Emergencial, em nome da austeridade fiscal estatal, houve a necessidade incessante de uma oposição forte e atuante para garantir o aumento do valor inicial proposto como Auxílio pelo poder Executivo. O ponto mais marcante, no entanto, é a intensa pressão do capital e do empresariado para que a única medida comprovadamente preventiva à proliferação do vírus — a quarentena — fosse combatida como se fosse, literalmente, o problema, e não parte do combate, que levaria à solução, ou, pelo menos, à mitigação dos efeitos da pandemia no Brasil. Tais políticas neoliberais ainda irão reverberar, mesmo após a pandemia e o primeiro momento da crise econômica causada por ela, aprofundando as desigualdades sociais e as demandas populares por seguridade, distribuição de renda, emprego e dignidade.

Desta forma, o individualismo capitalista se expressa da maneira mais mórbida possível no Brasil de políticas neoliberais orquestradas, no limite, por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes. Se expressa; na subnotificação de casos pela diminuição da atuação e da presença da capilaridade estatal, na elevação exponencial diária de casos que não cessa há pelo menos três meses, na ausência de apoio e de políticas públicas de mitigação da velocidade de contágio, de tratamento dos enfermos, de mitigação da crise econômica que tem efeitos catastróficos para pobres, desempregados, informais e microempresários e, em última instância, se expressa no número crescente de brasileiros mortos pela pandemia.

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Pedro Vinicius Paliares de Freitas
Revista Subjetiva

Estudante de Ciências Sociais na Unicamp. Leitor de Filosofia, Sociologia, História e Romances. Interessado em política.