O inimigo entre nós

Carlos Barth
Revista Subjetiva
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3 min readJul 1, 2020
Cena do filme “Nascido para matar” (1987) de Stanley Kubrick

Não lembro muitos detalhes daquele distante dia em Julho de 1999 além de que fez um frio desgraçado durante a madrugada na Barra do Rio Grande. Sensação térmica negativa, com certeza. O vento minuano, inclemente, balançava a guarita de concreto de onde fitávamos o nada, vigiando o quartel. Não havia inimigos, nunca houve. Nossa maior preocupação era não deixar o gado entrar e não sermos pegos desatentos pelo sargento que fazia a ronda. Porém, justo naquele dia, uma vaca invadiu o perímetro e deu uma cagada homérica bem em frente à sala do comandante.

Quando o sol nasceu estávamos todos lá, perfilados no gramado em frente à Sala de Estado tomando um esporro desmoralizante do oficial de serviço. Havia geado e a grama estava totalmente branca, congelada. O sol nascente derretia o gelo, que por sua vez molhava o coturno, enregelando até a alma.

A questão era: por onde entrou o bovino? Pelo meu posto garanto que não foi, porque as vacas que por lá se aventuraram procurando uma brecha na cerca foram devidamente repelidas à pedrada. Entretanto, algum outro soldado desatento — que estava dormindo ou se masturbando na guarita — deixou um bovino entrar e defecar bem pertinho da janela do comandante. E por causa do maldito “espírito de corpo” que os fuzileiros navais tanto falam, pagam todos. Não acho justo. Fiquei horas congelando naquele frio desgraçado, brigando contra o sono, pra agora tomar esporro. E ainda tivemos que recolher a bosta da vaca, obviamente.

- E se fosse um inimigo? E se fosse um comunista? — inquiria o tenente.

Se ele argumentasse que poderia ser um ladrão querendo roubar meu fuzil, eu até entenderia e daria razão. Acontece muito no Rio, dizem. Mas um comunista?! Pelo amor de Deus! Iria roubar o fuzil pra quê? Pra implantar uma ditadura do proletariado no Brasil? A farsa do Plano Cohen foi desmontada há anos e o muro de Berlim caiu há uma década.

- Já pensaram que ao invés de uma vaca poderia ter sido um guerrilheiro do Araguaia? — prosseguia o tenente com seus argumentos geniais.

Apesar de insone e com o cérebro embotado pelo frio, faço uma rápida conta mental e concluo que qualquer guerrilheiro que tenha sobrevivido ao Araguaia e quisesse invadir esse quartel no cú do mundo teria, no mínimo, uns 50 anos. Acho pouco provável. Além disso, com o frio que fez, provavelmente o idoso guerrilheiro teria uma crise de artrose ou contrairia uma pneumonia antes de conseguir lograr êxito na invasão.

- Me digam! E se fosse um inimigo? — pergunta o tenente.

Sinto vontade de dizer a ele que o único inimigo que conheci na Marinha veste o mesmo uniforme que eu. Sinto ganas de berrar que temo mais a um sargento ou oficial de riso fácil que prejudica a carreira de um soldado por puro sadismo do que qualquer comunista ou guerrilheiro.

Em dias assim o sangue ferve e amaldiçoo o dia em que vim parar nessa máquina de moer gente que é a Marinha. Lembro o dia em que cruzei esse pórtico sonhando me tornar soldado de uma tropa de elite. Aos poucos fui me dando conta de que, há sim, entre os fuzileiros navais grandes profissionais, grandes soldados, mas são minoria. A grande maioria é composta de gente medíocre e covarde que vive em um mundo paralelo, onde divisas e postos são salvo conduto para abusos de autoridade inimagináveis, verdadeiras torturas psicológicas.

A Marinha é uma máquina ineficaz cujo combustível são os sonhos e ilusões de jovens. Dia a dia vamos embrutecendo e o coração fica duro como rocha. Ineficácia elevada a enésima potência, ordens absurdas, tradições ultrapassadas. A Marinha é movida por um motor que converte nossa juventude em nada.

Provavelmente o ódio que me corroía transpareceu em meu rosto, pois o tenente interrompeu seu discurso, parou em minha frente e perguntou:

- Alguma coisa a dizer, soldado Barth?

-Não, senhor — respondo engolindo a raiva, ingerindo minha dose diária de veneno.

Cena do filme “Nascido para matar” (1987) de Stanley Kubrick

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Carlos Barth
Revista Subjetiva

Aspirante a escritor, karateca dedicado e budista relapso.