O Irlandês: O testamento de um gênero, uma geração, um mestre

Carlos Massari
Revista Subjetiva
Published in
7 min readDec 2, 2019

(Esse texto contém spoilers sobre O Irlandês).

Desde quando eu consigo me lembrar, tudo que eu queria era ser um gângster. Com essas palavras, Henry Hill, personagem vivido por Ray Liotta, abre Os Bons Companheiros em voice over após um assassinato brutal ser mostrado em cena. O que temos ali é um homem que celebra o seu estilo de vida, por mais terrível que ele possa ser visto a olhos normais.

Martin Scorsese é um cineasta inconfundível. Um dos poucos que uma cena basta para se reconhecer que foi quem dirigiu determinado filme. O uso da música, os planos-sequência, o humor escrachado em situações difíceis de se encontrar humor. Essas características são ainda mais acentuadas quando ele entra em seu território preferido: a máfia.

O Irlandês começa como um Scorsese clássico: a câmera desfila em um plano-sequência enquanto uma música romântica toca ao fundo. Porém, dessa vez não há assassinato. Estamos em um asilo. Entre tantos senhores e senhoras que vêem os finais de suas vidas se aproximando, chegamos à figura de Frank Sheeran. Em uma cadeira de rodas, sozinho, ele começa sua narrativa em voice over, assim como Henry Hill. Mas sua fala é muito mais neutra: Quando eu era jovem, achava que pintores de casas pintavam casas.

Aos 77 anos de idade, Scorsese é parte de uma geração que revolucionou o cinema norte-americano. Mais ainda, o gênero filme de máfia. Dois de seus melhores amigos são Francis Ford Coppola (80, da trilogia O Poderoso Chefão) e Brian DePalma (79, de Scarface e Carlito’s Way).

O cinema de máfia foi muito popular na década de 1930. Naquela época, Hollywood impunha um código moral às suas produções que obrigava a severa punição de vilões. O arrependimento não era uma possibilidade, muito menos, a glamourização. Sem a chance de identificação entre público e protagonistas, o gênero foi suplantado pelo faroeste: o norte-americano branco podia se identificar com heróis que matavam índios.

A versão de Scarface de 1932.

Quando o gênero voltou à tona nos anos 70, o cinema era muito mais anárquico. Francis Ford Coppola fez uma obra de moral absurdamente complexa em O Poderoso Chefão, sem delinear heróis e vilões. Esse não é um filme que dá glamour ao estilo de vida mafioso, apenas pinta um painel humano dos personagens que trata. Um prato cheio para que outros cineastas pudessem tratar as histórias dos submundos criminosos com seus próprios olhares, longe do caráter punitivista que antes existia.

Scorsese, DePalma, Coppola e tantos outros cineastas criaram histórias inesquecíveis tratando de seus anti-heróis mafiosos. E, para isso, também tinham alguns atores preferidos que se tornaram as faces do gênero. Al Pacino (79) esteve na trilogia O Poderoso Chefão, em Scarface e Carlito’s Way, Robert DeNiro (76) em O Poderoso Chefão II, Caminhos Perigosos, Cassino e Os Bons Companheiros, e Joe Pesci (76) em Os Bons Companheiros e Cassino.

Todos esses cineastas e atores que recriaram o gênero e fizeram com que ele voltasse a ser extremamente popular têm mais de 75 anos. Estão nas partes finais de suas vidas. Hoje, podem olhar com maturidade para o que fizeram no passado e para o tempo que lhes resta.

O Irlandês, ao contrário de Os Bons Companheiros, é a história de um homem que nunca quis ser um gângster. Que aprendeu a matar na guerra, por necessidade. Que percebeu que poderia ganhar um bom dinheiro fazendo isso. Que não sentia mais nada ao fazê-lo e, por isso, seguia seu trabalho. Como alguém que realmente pinta casas.

Ao contar a sua história em seu leito de morte, Frank Sheeran é um homem amargurado. Ele não tem mais contato com a sua filha, ele precisou matar seu melhor amigo, ele está sozinho, tendo apenas um padre como potencial figura de consolo. Ele descobriu da pior forma possível que os homens que pintam casas não apenas pintam casas. Mas, sua reflexão nesse momento, é que as coisas são como elas são.

Não houve glamour em sua trajetória. O fio condutor da narrativa é uma viagem de carro com incansáveis paradas para fumar na estrada. Sem jantares em restaurantes caros, sem dinheiro sobrando para qualquer tipo de ostentação. Pessoas fazendo seus trabalhos. A vida seguindo, como em qualquer outro emprego. Mas, nesse caso, é um emprego que custa muito caro.

A genialidade de Martin Scorsese está em filmar essa história com todas as suas características tradicionais. Os planos sequência estão ali, o uso da música é constante e perfeito, o humor aparece em momentos totalmente inesperados, como a hilária cena do primeiro encontro entre Sheeran e Jimmy Hoffa, regado a vodka e melancia.

A casca é a mesma de Os Bons Companheiros e Cassino. É a mesma até de O Lobo de Wall Street, incursão recente do diretor em um território diferente, mas parecido. Scorsese, afinal, é inconfundível. Mas o que se esconde por trás dessa casca é outra coisa. Longe da glamourização da máfia, longe de pessoas que sempre quiseram ser gângsteres, existe um trabalho árduo e que deixa marcas.

Se existe uma diferença estilística entre os filmes, é justamente nas cenas de assassinato que ela aparece. As mortes em O Irlandês são frias, rápidas, corriqueiras. Tiros que sujam a parede de sangue, saída rápida, arma no rio. É onde há pouco espaço para a música e os planos-sequência. Faz parte da narrativa, precisa ser mostrado, mas simplesmente, as coisas são como elas são.

Uma das cenas mais icônicas de O Poderoso Chefão acontece nos segundos finais do filme, quando Michael Corleone (Pacino), apontado como novo chefe da família, recebe seus comparsas para tratar de negócios. A câmera mostra a porta se fechando, deixando de fora a esposa do mafioso. Dentro daquela sala, tudo continuará como era antes.

Cena final de O Poderoso Chefão

Nos segundos finais de O Irlandês, Frank Sheeran é visitado pelo padre do asilo em que está internado. Então, pede para que a porta seja deixada aberta. Está sozinho. Não há mais negócios a se tratar. Não há ninguém para conversar. Essa história acabou. Não vou a lugar nenhum, ele diz.

Cena final de O Irlandês

Não é só O Irlandês que chega ao fim. Não é só a vida de Frank Sheeran. É a trajetória de Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian DePalma, Al Pacino, Robert DeNiro, Joe Pesci e tantos outros. Claro que eles podem continuar em atividade e produzir ainda muita coisa, e torcemos para isso, mas com todos beirando os 80 anos de idade, um testamento era necessário.

Os Bons Companheiros termina com Henry Hill entrando no programa de proteção às testemunhas e passando a levar uma vida convencional. Hoje não existe ação. Tenho que esperar pelas coisas como todos os outros. Não consigo nem comer comida decente. Sou um completo ninguém. Tenho que viver o resto da minha vida como uma mosca morta, ele diz em suas considerações finais. Não há arrependimento. Não há mudança. Ser um gângster era excelente, ser uma pessoa comum é terrível.

Os 29 anos que se passaram entre Os Bons Companheiros e O Irlandês marcam a diferença entre um homem no topo do mundo, um cineasta de meia idade já reconhecido como um dos maiores da história, e um senhor que vê a morte se aproximar e precisa pensar em como lidar com seus últimos anos e como lidar com o legado de sua obra. São 29 anos que também marcam a diferença entre como Henry Hill e Frank Sheeran lidam com suas carreiras de gângsteres.

O incrível domínio narrativo de Martin Scorsese é o que faz o nome dele fundamental em qualquer discussão sobre qual o maior cineasta de todos os tempos. Mas O Irlandês é uma de suas obras máximas pela maturidade. Sem perder nem um pouco do vigor e do talento que sempre teve, o cineasta consegue trazer questões morais muito mais profundas e fazer um filme que, como nenhum outro de sua trajetória, é triste e desolador.

Scorsese e seus amigos revolucionaram o cinema norte-americano. Dirigiram e atuaram em algumas das maiores obras-primas de todos os tempos. Recriaram o gênero filme de máfia. Marcaram seus nomes na história. Mas, conforme o fim se aproxima, as coisas são como elas são.

Eis o testamento que era necessário: O Irlandês, o melhor filme pelo menos dos últimos 15 anos.

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Carlos Massari
Revista Subjetiva

Jornalista, roteirista, escritor. Falo aqui sobre cinema e os esportes que não falo em outros lugares.