O Mínimo para Viver: o novo filme da Netflix que aborda transtornos alimentares

Lucas Lucena Sonda
Revista Subjetiva
Published in
5 min readAug 9, 2017

TW — Transtornos alimentares, anorexia, internamento.

Anorexia. Bulimia nervosa. Desajustamento social. Famílias despedaçadas. Esperanças singelas de recuperação. É desse misto desconfortável de premissas que parte o longa-metragem de produção da Netflix e recentemente disponível no canal de streaming.

Logo de cara, o letreiro inicial do filme aconselha: “as situações representadas aqui refletem uma realidade bastante delicada, verossímil e dolorosa. Pacientes e profissionais foram consultados para que o problema pudesse ser abordado de forma realista. Recomendamos prudência ao assistir”. E este aviso não poderia ser mais justo. Do alto da minha ignorância, só pude imaginar — e muito vagamente — o quão difícil seria para pessoas com transtornos alimentares terem seus conflitos interiores reavivados, trazidos à tona, por uma produção como essa. E já estamos versados em quão empenhada a Netflix é em expor situações adversas. Foi assim com Sense 8, 13 Reasons Why e Dear White People, por exemplo.

Confesso que estava diante da tela, ao menos de início, pelas indicações positivas espalhadas pela internet, pelo drama como gênero, por Keanu Reeves no elenco e por confiar, de forma geral, na qualidade técnica que as produções da Netflix costumam ter. Nunca estive próximo da problemática abordada pelo filme, nem tive contato direto com vítimas desses transtornos. Entrei de cabeça na produção, portanto, imaginando que a anorexia da personagem principal pudesse ser apenas o pontapé para o desenrolar dramático do restante do enredo (como é comum em tantas produções, vide Precisamos Falar Sobre Kevin), e não poderia estar mais prazerosamente enganado.

Acompanhamos enfim a história de uma jovem chamada Ellen, anoréxica e paciente regular de clínicas especializadas. Ellen, como diversas vítimas de transtornos alimentares (e o filme aborda isso sem rodeios), possui traumas pessoais, uma família dividida e descrença quase total na capacidade de médicos e grupos de ajuda em propiciar recuperação para o problema que lhe acomete.

Após os fracassos recorrentes de Ellen em vencer a doença — evidenciados logo nos primeiros minutos do longa —, o ponto de virada e verdadeiro pontapé para o filme, no entanto, é a apresentação de um médico com métodos pouco ortodoxos (Keanu Reeves) e a sensação geral da protagonista em enxergar aquela como sendo sua “última tentativa”. O filme, aliás, de forma muito inteligente e impactante, não nos deixa escapar o seguinte questionamento: quantos já estiveram vivenciando suas últimas tentativas, de forma paradoxal, uma vez após a outra, seja por desapego à vida ou por não enxergarem futuro além da doença, seja ela qual for? Em que momento o ser humano interioriza determinada tentativa como sendo a última antes de desistir de tudo e de todos?

Ao aceitar o novo método de tratamento, Ellen mergulha numa perspectiva diferente daquilo que vivenciou até então. Primeiro, a abordagem da condição médica dela e de seus pares se torna mais crua, sincera e direta. O paralelo com o vício em drogas, presente na trama ao correlacionar os hábitos distintos de anoréxicos (como o vômito forçado, os laxantes ingeridos e os exercícios constantes para queimar calorias) se assemelha à incapacidade dos viciados em negar o uso de entorpecentes, mesmo tendo consciência direta de seus malefícios, não só sobre si mesmo, mas também sobre aqueles que o rodeiam.

Segundo, por inverter a ótica tradicional que se espera de filmes desse gênero. Aqui, a abordagem médica é deveras importante, mas não deixa de ser secundária. Em primeiro plano estão os conflitos particulares de cada um, a forma como se relacionam com a doença e com aqueles que passam pelo mesmo problema. Keanu Reeves, nome de maior peso no elenco, acaba se tornando coadjuvante na produção, tem pouco tempo em cena (mesmo agregando muito quando aparece) e funciona, quase exclusivamente, como força motriz para os diálogos carregados e para as discussões que o longa se propõe a realizar.

Terceiro, por reforçar a indubitável importância do paciente querer, de fato, curar-se e de como nenhum método é eficaz sem o empenho de quem está se tratando. Na residência palco da internação, os personagens convivem, dormem e comem (ou tentam comer) todos juntos. Alicerçam as conquistas do outro e veem nelas incentivo para alcançar suas próprias. Seu progresso é recompensado com maior autonomia, independência e liberdade (contrapondo os modelos de internamento tradicionais, fechados, frios e menos humanos). Na casa, cada um vê a forma singular como o outro desenvolveu o mesmo transtorno, como lidam com isso, seus maneirismos, até mesmo como driblam parte do tratamento e, especialmente, como tratam da morte, ameaça palpável e tema recorrente entre pacientes anoréxicos.

Abrindo um rápido parênteses, desnutrição severa e a incapacidade psicológica de comer, engolir, manter no estômago ou meramente mastigar comida muitas vezes forçam o entubamento do paciente e a alimentação compulsória via soro para que o pior seja evitado. Intuitivamente, quem não sofre desse mal acaba esperando que situações tão dolorosas como essas possam ser um divisor de águas em direção à recuperação. Por fim decepcionam-se. Tudo aquilo que age sobre a consequência do problema e não sobre sua causa tem pouco potencial transformador. Se retomarmos o paralelo anterior do vício em drogas, podemos enxergar a mesma relação: superar uma overdose também não é garantia absoluta para a cura ou busca sincera dela.

To The Bone (O Mínimo para Viver) é um filme sobre transtornos alimentares, sim, mas consegue ser muito mais do que apenas isso: é, igualmente, sobre conexões, sobre conhecer a si mesmo, sobre abraçar o valor da vida e compreender sobre o quão importante é a vontade pessoal para superar qualquer obstáculo. Nessa toada, o filme desnuda uma realidade que muitos não estavam habituados a enxergar, e me coloco incluso nesse grupo. Terminei o longa com muito mais empatia e muito mais consciente da batalha enfrentada por quem sofre desses transtornos.

Como filme, tecnicamente, têm personagens bem construídos, verossímeis e idiossincráticos. Atuações positivas, bons diálogos, uma bela fotografia e enredo muito bem amarrado. A maquiagem e o figurino, por sua vez, também convencem. Ótimo pedido para quem procura um drama forte e relevante. Uma crítica com spoilers poderia aprofundar e exemplificar muito do que foi dito aqui, mas isso estragaria sua experiência individual, caro leitor. Veja e opine!

PS.: À luz de alguém que tenha passado por transtornos alimentares, com certeza a experiência do filme será muito diferente da minha. Fico curioso, inclusive, para ler algo escrito por alguém nessas condições (desde que não seja demasiadamente traumático para ela assistir ao filme). Os padrões de beleza e a cobrança constante sobre as mulheres para se adequarem a eles é também muito relevante e rapidamente abordada no longa. Tal discussão poderia ser aprofundada em outra oportunidade que não uma crítica sem spoilers e de preferência por mulheres imensamente mais versadas nesse assunto do que eu.

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Lucas Lucena Sonda
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Escreveria mais e sobre mais coisas se não fosse a compreensão da minha própria ignorância.