O muro
- Então, doutor? O que lhe parece o muro?
- Mas Seu Zé, esse muro está torto!!!
- Ora, ora, doutor. Não fale uma coisa dessas…
- Olha lá! O muro está tortinho, tortinho! Que palhaçada é essa?
- Fique calmo, doutor. Não se exalte…
- Como ficar calmo, Seu Zé? Lhe paguei tudo certinho, até adiantado, e o senhor me faz o muro torto?!
- Torto em qual sentido?
- Como assim, em qual sentido? No sentido de que não está reto, ué! Não está no prumo, ora bolas!
- Desculpa doutor, acho que não me expressei bem. Não precisa ficar nervoso. Eu sei o que é torto.
- Sabe? Pois não parece. Lhe pago em dia, tudo certinho, e o senhor me apronta uma dessas!
- Calma doutor. Eu quis dizer em qual sentido, mas o que eu queria saber era qual eixo do plano cartesiano o senhor usou como referencial para afirmar que o muro está torto.
- Como é que é? O senhor só pode estar brincando comigo!
- De forma alguma, doutor. Longe de mim brincar com uma pessoa tão distinta como o senhor. Sou um humilde pedreiro. Conheço meu lugar.
- Pois não parece! Chegou aqui todo humilde, choramingou um adiantamento contando um monte de histórias tristes, e agora está todo cheio de conversa pra não admitir que fez o muro torto!
- Mas doutor, o que eu estou tentando explicar ao senhor é que o muro não está torto.
- Como não está torto!!! É visível que está torto! Olha ali! Tortinho, tortinho!
- Por favor doutor, se acalme e me deixe explicar porque o muro não está torto.
- Você quer explicar? Pois então explique pra mim como o senhor, recebendo o pagamento direitinho, até adiantado, me fez um muro torto.
- Me ouça, doutor.
- Vamos lá. Sou todo ouvidos.
- Pois bem. Vou fazer uma pergunta ao senhor.
- Pois pergunte.
- Qual a forma da Terra?
- Isso só pode ser uma brincadeira…
- De forma alguma, doutor. Sou um homem humilde, porém honrado. Jamais brincaria com um cavalheiro tão distinto como o senhor.
- Então me explique porque o senhor fez o muro torto!
- Mas doutor, é o que estou tentando explicar. Por favor, estou sendo honesto com o senhor. Me diga qual a forma da Terra.
- Ora, bolas. Todo mundo sabe que a Terra é redonda!
- Aí que está o erro, doutor. Por isso o senhor está enganado. A Terra não é redonda.
- Como assim a Terra não é redonda? Você nunca viu um globo desses de biblioteca? Até uma criança sabe que a Terra é redonda!
- Doutor, a Terra não é redonda. O elipsóide de revolução comumente usado para representar a Terra nada mais é do que uma simplificação didática para descrever um modelo que, na realidade, é muito mais complexo.
- Como é que é??!!
- Na verdade a Terra é um geóide e a forma geométrica que mais se aproxima dela é a de um esferóide oblato achatado nos pólos.
- Esferóide o quê?
- Oblato. Que tem o semi-eixo de rotação menor que os outros semi-eixos.
- Estou pasmo…
- Além disso, o senhor não está considerando o efeito de paralaxe da sua visão em relação ao muto.
- Efeito do quê?
- Paralaxe.
- Vixe, Maria!
- Logo, se o doutor usar o referencial correto e considerar a observação a partir da superfície de um geóide com a forma geométrica de um esferóide oblato, sem desconsiderar o efeito de paralaxe resultante da visão do ponto onde o senhor está situado em relação ao muro, o doutor, que é um homem inteligente, vai concordar comigo que o muro não está torto.
- Realmente, não tinha pensado sob essa perspectiva…
- O doutor é um homem muito ocupado…
- Pois é, essa correria…
- Acontece, doutor.
- Seu Zé, o senhor me desculpe. Não imaginava que o senhor fosse um homem tão culto.
- Que isso, doutor. Sou um humilde peão.
- Que nada, o senhor fala igualzinho meu antigo professor da faculdade.
- Quem me dera, doutor.
- Olha, vou contar lá na firma que meu pedreiro é um gênio da construção civil.
- Que isso, doutor. Assim o senhor me deixa até sem graça.
- Não fique, não. Um pedreiro com todo esse conhecimento não se encontra todo dia!
- Poxa, doutor. Muito obrigado pelo reconhecimento.
- E tome aqui mais um trocadinho de bônus pela aula de hoje.
- De forma alguma, doutor. Não posso aceitar. O senhor já me pagou tudo, até adiantado.
- Deixe de cerimônia, homem! Aceite logo esse dinheiro. Você merece!
- Obrigado, doutor. Vou aceitar só porque estou precisando do leite das crianças…
- Vamos, homem! Deixe de cerimônia. Pegue logo esse dinheiro.
- Muito obrigado, doutor.
Doutor foi pro trabalho satisfeito por ter contratado um pedreiro tão capacitado para a construção do muro. José Ricardo, o “Seu Zé”, voltou pra casa preocupado pois não sabia até quando seus conhecimentos teóricos de ex professor universitário seriam suficientes para livrar sua pele na nova profissão. O muro continuou lá. Tortinho, tortinho.