“O Negócio do Michê” de Néstor Perlongher

Clássico da antropologia contemporânea, etnografia é mais atual do que nunca

_erinhoos
Revista Subjetiva
4 min readMar 5, 2021

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Néstor Perlongher (1949–1992). Imagem.

Publicado em livro em 1987, O negócio do michê — A prostituição viril em São Paulo é produto direto de pesquisa conduzida no âmbito do programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas pelo antropólogo argentino Néstor Perlongher, sob orientação de Mariza Corrêa. Conhecido militante, escritor e poeta na Argentina, Néstor migrou para São Paulo em 1982, ano em que ingressou no mestrado e iniciou seu trabalho de campo. Ainda em 1987 é publicado o livro O que é AIDS, que compõe a segunda parte de sua bibliografia em português, prematuramente encerrada pelo seu falecimento em 1992. No que tange à análise do desejo em contexto urbano, sua etnografia é, por assim dizer, seminal entre as abordagens ditas não-essencialistas agrupadas sob a rubrica dos estudos que versam sobre afeto e erotismo entre homens no Brasil. A análise da produção histórico-social e da operatividade de uma miríade de categorias e territórios por meio de um ferramental que conjuga pós-estruturalismo francês e teorias socioantropológicas consagradas (dentro das quais se destaca a Escola de Chicago), quando agenciada pelo autor, permite com que se desvele processos de territorialização e desterritorialização na superfície de um código-território complexo e marcado por polaridades “molares” (gênero, idade, classe) e colisões “moleculares” do desejo.

O livro tem sete capítulos e foi baseado em entrevistas semi-direcionadas e “itinerantes”, além de levar em conta uma série de documentos e relatos mais longos. Em primeiro lugar, Néstor traça uma “história da formação das taxonomias dos personagens sociais envolvidos no jogo das relações homossexuais na cidade de São Paulo e sua distribuição pelo espaço do centro da cidade” (FRY, 2008: p.40), para, em seguida, fazer uma análise profunda acerca dos componentes e escalas em que os sistemas descritos operam, se reproduzem e se renegociam. Assim, mostrando a importância da perambulação como método, o autor desenha suas estratégias argumentativas, articulando diferentes processos; de territorialização e desterritorialização, classificação e diferenciação; e, finalmente de “conversão de intensidades libidinais a quantidades econômicas conforme atributos possíveis de serem agrupados em séries de oposições binárias que, resumidamente, se processa[m] no negócio do michê” — “esse complexo dispositivo de trocas microscópicas, moleculares” (PERLONGHER, 1984).

O trabalho de Néstor é seminal em muitos aspectos, tanto no que se refere à abordagem acerca do espaço, como na análise acerca das relações afetivas e eróticas engendradas a partir de topografias sociais e dos tensores deflagrados pelas relações de segmentariedade, e, ainda, sobre o que se convencionou chamar “relações transacionais”. De acordo com o argentino, o “dispositivo da prostituição”, com efeito, teria como um de seus “mecanismos básicos”, o estabelecimento de “equivalências entre o nível das intensidades pulsionais e os segmentos monetários” (PERLONGHER, 2008: p. 246). O aspecto contingente das relações contratuais operaria, dentro desse sistema, a partir das relações entre oposições binárias (molares) de gênero, idade, classe e raça, posta em marcha pelos encontros (moleculares) na superfície do código em que proliferam categorias​ ​situacionais. É, ainda, digno de nota a impregnação de sua escrita pelo neobarroso, o estilo autoral que consagrou Néstor como poeta e prosador em seu país de origem.

As formas de análise empreendidas pelo poeta-antropólogo são fruto de uma conjugação original entre diversas linhagens da sociologia e antropologia contemporâneas, com forte destaque para o pensamento pós-estruturalista (Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michel Foucault, Jean Baudrillard, Jean-François Lyotard, Michel Maffesoli) e a Escola de Chicago (Georg Simmel, Robert Park, Howard Becker, Erving Goffman, Louis Wirth, William Foote Whyte), além da forte presença da contribuição do escritor e militante francês Guy Hocquenghem. O autor também demonstrava conhecer e apreciar a produção nacional (na qual estava igualmente inserido) versada em alteridade próxima (PEIRANO, 1999) que se consolidava nos principais departamentos de antropologia do país na década em que Néstor realizou sua pesquisa — daí ser notável sua interlocução com a obra de Peter Fry, Edward McRae, Eunice Durham, Carmem Dora Guimarães e Gilberto Velho. A abordagem adotada pelo autor em sua pesquisa vanguardista sobre “prostituição viril” no centro de São Paulo ao longo da década de 1980 segue sendo fortemente inspiradora — fato que se deflagra por meio da sua insistente influência na produção brasileira contemporânea nos campos da antropologia do espaço urbano e dos estudos de gênero e sexualidade.

Referências mencionadas:

FRY, Peter. “Prefácio à 1ª edição”. In: PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê — A prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Fundação Perseu​ ​Abramo,​ ​2008.
PEIRANO, Mariza. “Antropologia no Brasil (Alteridade contextualizada)” In: MICELI, Sergio (org.). O que ler na ciência social brasileira (1970–1995). Brasília: Sumaré, ANPOCS, 1999.
PERLONGHER, Néstor. “Amor e comércio na prostituição viril”. In: Anais da Associação Brasileira​ ​de​ ​Estudos​ ​Populacionais,​ ​1984.
_____________. O que é AIDS. São Paulo: Brasiliense, 1987.
_____________. O negócio do michê — A prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Fundação Perseu​ ​Abramo,​ ​2008.

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_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas