O Palhaço do Circo sem Futuro

joice berth
Revista Subjetiva

--

(…)E a lona rasgada no alto

no globo os artistas da morte,

e essa tragédia que é viver…

e essa tragédia.

Tanto amor, que fere e cansa”

Cordel do Fogo Encantado

Eu fiz uma conexão inevitável entre o Curinga e a música da lendária banda pernambucana, que conta a história do palhaço desiludido e angustiado, sem rumo e cansado da tragédia de amar. Na verdade, desde que ouvi pela primeira vez a música do Cordel do Fogo Encantado, automaticamente pensei nesse personagem, apensar da música ter um apelo bem menor trágico do que o do filme.

A tragédia do palhaço nasce quando ele descobre que a sociedade é um circo sem futuro e passa a cantar como piada a própria tragédia. É subversivo devolver ao mundo exatamente o que ele nos dá? É uma pergunta que me toma sempre que angústia se faz presente, evocando o mesmo sentimento que assimilamos no personagem: a dor da solidão. Talvez seja mais subversivo, aprender a equilibrar os sentimentos de desprezo e solidão, típicos de uma sociedade do espetáculo, onde a seletividade é o idioma que desenha a importância das coisas, aprendendo que a solidão é um caminho não necessariamente tortuoso, por vezes, libertador( Keanu Reeves que o diga…)

Não creio que o Curinga seja uma obra-prima do cinema. Outros filmes já foram bem mais competentes trabalhando no limiar entre a ficção e nossos questionamentos reais. Mas é um bom filme. Já a interpretação do Joaquim Phoenix, sem dúvida é épica. É um filme competente, um roteiro honesto e comprometido com aquilo que se propõe, que é fazer um mergulho hipotético na vida pregressa do vilão mais intrigante e cativante que Gothan City, o globo da morte, já conheceu.

É muito inteligente a maneira “natural” com que a história do Batman se entrecruza com a do Curinga. Sem ser apelativa evoca estrategicamente o Curinga de Heath Ledger, em determinados momentos das cenas finais, nos dando a impressão de que Arthur Fleck era exatamente a parte que precisávamos conhecer do Curinga que vimos em The Dark Night.

A fotografia e direção de arte criaram uma atmosfera que facilita para o espectador, a leitura do ambiente social, a Gothan City dos primórdios dos anos 80, em que o personagem está inserido e conduz, ao longo do filme para onde o diretor pretende levar: o apogeu de uma figura que perde o controle de si mesma se entregando ao seu lado mais sombrio e violento. Tudo que as pessoas tentam fazer é o oposto, abafar suas tendências nada glamourosas e, porque não dizer, amorosas. Temos raivas, desgostos, incompreensões, arrependimentos, insatisfações, perversidades e outros afetos que não são nobres, transitando nos quartinhos de bagunça da alma, que trancamos e jogamos a chave fora, sem nos dar conta de que eles fluem, independente da nossa vontade. Por vezes penso que o grande sonho humano é ser integralmente considerado bom ou “de bem”. Mas ao negligenciar as demandas psiquicas que clamam por um trabalho honesto e consciente, caminhamos no sentido oposto. Assim como assistimos na transformação comportamental de Fleck.

Me parece perigosamente simplista resumir a vida de Arthur Fleck a uma catarse causal que justifique sua guinada maléfica. Os artifícios adicionais e o ritmo da direção, incrementam a narrativa que traz diversos questionamentos inerentes ao desenrolar de sua transformação. A impressão que eu tive é a de que ele, Arthur Fleck, não teria outra saída senão a estagnação que o mataria simbolicamente para, renascer senhor de suas dores. Dores estas que claramente dominavam Fleck, mas foram dominadas pelo Curinga e descarregadas no Circo Sem Futuro, a sociedade. Mas esse é o caso dele e não necessariamente um chamamento do destino para toda e qualquer pessoa que sofre, conforme algumas análises simplistas e superficiais se apressam em decretar.

Embora as discussões não sejam devidamente aprofundadas, é necessário entender que o cinema não é uma arte que permite grandes conjecturas tão aprfundadas. O cinema é a arte de incitar questionamentos fazendo uso de artifícios imagéticos e/ou simbólicos. As diversas pontas soltas que aparecem no roteiro, só se esgotariam em uma série ou em um spin off( como Better Call Saul, por exemplo).

A riqueza do filme está justamente em levantar questões que não estão na pauta do dia, mas que deveriam, já que impactam diretamente nossas vidas. A primeira delas é a questão da saúde mental, dos sofrimentos psíquicos, da loucura e da medicalização da vida. O público e as polêmicas que se levantaram sobre o filme, giram em torno do sofrimento e da perda da razão( a loucura) como justificativa para o “nascimento” de um assassino. Reducionismo tão irreal, quanto perigoso, pois trabalha no campo da autopiedade, um mecanismo de defesa psiquica que só impede o confronto com nossa autonomia emocional, uma vez que delega ao mundo a nossa participação na condução dos efeitos de uma sociedade opressora. A autopiedade nos torna o espetáculo perfeito para uma sociedade sádica e pouco comprometida com o que tanto prega: O amor ao próximo.

As pessoas que comentam sobre o filme, definem com muita rapidez que trata-se de um indivíduo doente mental. O filme não apresenta um diagnóstico e trabalha em cima dos estereótipos e preconceitos direcionados a figura do “louco”. Mas devemos lembrar que louco é uma categoria impregnada de construção sociopolítica e cultural, desde o século XVI, conforme diz Foucault em História da Loucura. Tomamos por louco, qualquer um que fuja da normalidade estipulada pela sociedade e isso, distancia e hierarquiza pessoas, a medida em que desautoriza existências que não atendem uma normalidade compulsória.

O que o filme pergunta, desde as caracterizações anteriores do personagem é: O que é ser louco? Há Há uma discreta crítica, talvez não intencional, sobre a medicalização da vida. Dores e enagustias inerentes a condição humana, não desaparecem sendo medicadas como vem sendo sistematicamente, se acumulam e viram uma bomba relógio, como no caso de Arthur Fleck. Ele mesmo responde a mulher que o atende, que também não sabemos se é psicóloga, psiquiatra ou psicanalista, que os sete tipos de remédio que ele tomam não fazem desaparecer a dor que ele sente. Compreender e lidar com nossas dores, dúvidas, ansiedades, frustrações e debilidades psiquicas e emocionais é um caminho mais seguro, que tem sido cada vez mais rejeitado por uma sociedade imediatista que sofre mais, a medida que evita o sofrimento como ferramente de crescimento e condição para se desenvolver a empatia.

Não é poque Arthur Fleck toma remédios que há, de fato, algo a ser tratado por via medicamentosa. Arthur Fleck demonstra responsabilidades e habilidades para viver em sociedade, mesmo com um comportamento introvertido. Ele trabalha, cuida da mãe, se preocupa com o próprio futuro, recusa uma arma que lhe oferecem( ainda que tenha ficado com ela). Me lembro do Alienista de Machado de Assis, com seu Simão Bacamarte que no final percebe que está nele, talvez, a verdadeira loucura por justamente decretar que todo e qualquer comportamento como anormal, apenas porque foge do que ele considera norma. Há sim, conforme é mostrado, um problema neurológico, responsável pelo riso involuntário: afeto pseudobulbar ou Transtorno da expressão emocional involuntária, que é uma sequela de algum traumatismo, AVC, etc. Isso é categórico no filme, sendo mostrado pelo Fleck em algumas cenas onde ele mostra uma espécie de documento avisando sobre o transtorno.

Há outra porta que fica entreaberta quando temos a cena que explica sobre sua filiação. Não é há elementos suficientes para definir que a mãe foi cúmplice do abuso sofrido por ele ou que realmente a paternidade não seja do inescrupuloso Thomas Wayne. Sua mãe pode ter sido violentada pelo inescrupuloso por um patrão que tinha poder suficiente para confiná-la em uma internação ou em um falso diagnóstico de doença mental, para se livrar da paternidade e do caso extra conjugal. Tantas mulheres foram e são historicamente alvo desse tipo de violência. Porque a mãe do Fleck não poderia ser mais uma? Sabemos que esse foi o desfecho de muitos envolvimentos sexuais entre patrão/empregada culminando ou não em uma gravidez. Não faz o menor sentido uma mulher que já tinha problemas psiquiátricos adotar uma criança( ok, é ficção, mas tem seus limites…).

Além disso, ela não foi cúmplice dos abusos sofridos pela criança, ela desenvolve o mecanismo de defesa da negação: ela nega os abusos dizendo que não ouvia ele chorar e o apelida de “Feliz”, dizendo que ele veio ao mundo com a missão de levar alegria, inclusive para ela. A mãe de Arthur

manipula a realidade para evitar a frustração e o sofrimento do qual não podia se livrar. Se a intenção de Todd Philips foi enfatizar um duplo abandono e violência também por parte da mãe, errou ao não apresentar elementos que sejam definitivos para essa narrativa. A mãe me parece tão vítima quanto o filho. Há uma marcação do rito de passagem do Fleck para o Curinga, expresso pela quantidade de vezes em que ele atravessa corredores nas cenas. Ele está sempre fazendo um caminho estreito, que não permite uma visão do todo. A analogia da escada também chama a atenção: quando parece que ele está triunfando, está na verdade sucumbindo, descendo aos domínios de suas sombras não trabalhadas, expressando uma alegria estridente e tortuosa, como se o transtorno que antes se apresentava em forma de risos imotivados, agora tomasse o corpo todo. Cada gesto da dança da escada é na verdade, um misto de revolta com perversidade. Tudo que foi dito sobre a tranformação de Fleck ser um produto do meio não é convincente, embora o meio seja uma influência real na formação de subjetividades que por vezes, se tornam espetáculo.

Existem diversos Flecks espalhados pelo mundo afora, em situação de grande tormento, privação, humilhação e abandono que lidam com o meio de outra forma. É importante esse filme trazer uma outra discussão fundamental: a da responsabilização ou o que eu faço com o que fizeram de mim? Até que ponto o meio social e suas crueldades servem de justificativa para as perversidades que deixamos fluir?

Quando Fleck posiciona e confirma que sua revolta não é política, ele trai o espectador que se apressa em romantizar( ou banalizar) a maldade, afirmando que ela só pode ser produto do meio social e das circunstâncias pessoais caóticas. E se torna ainda mais político, a medida que se encaixa como vedete ( ou vedeta, citanto A sociedade do espetáculo de Guy Debord)de um espetáculo que sempre o colocou como figurante e mantenedor:

O agente do espetáculo posto em cena como vedeta é o contrário do indivíduo, o inimigo do indivíduo, tanto em si próprio como, evidentemente, nos outros. Passando no espetáculo como modelo de identificação, renunciou a toda a qualidade autônoma, para ele próprio se identificar com a lei geral da obediência ao curso das coisas.”( pag. 43)

Aceitar a reverência de uma sociedade que até então o feria, juntando-se a sua histeria vazia, é produto de uma intensa identificação com tudo que ela representam ainda que o tenha feito sofrer. Curinga na verdade, pensando em tudo que sabemos dele é, de fato, o agente do caos, aquele que não quer resolver qualquer incongruência social ou cultural e sim, se deixar levar pela onda idiotizante do mundo, o circo sem futuro, que em um primeiro momento o coloca como vítima, para em um segundo momento, decretá-lo como herói, mediante sua aderência a linguagem do poder vigente, que é a violência gratuita.

Assim como não há justificativa para a agressão que ele sofre dos três assediadores covardes no trem, não há justificativa para a arma que ele recebeu do colega de trabalho ser levada para uma apresentação em um hospital infantil, expondo crianças ao perigo. Do mesmo modo que é inexplicável matar a própria mãe, e ele o faz para se libertar de seus últimos vestígios de caráter, é também duvidoso que ele os motivos que o levam a fantasiar uma relação afetiva com a vizinha a ponto de invadir o apartamento dela ou seguí-la a caminho do trabalho, ainda que o filme dê indícios de que seria um delírio esquizofrênico. Tudo isso faz parte de um amplo movimento de identificação, ou banalização do mal( Arendt) que culmina na cena do trem onde todos estão hipnotizados no jornal que tem o crime como destaque. As pessoas se identificam com a violência, porque de certo modo, todos somos Curingas, negligenciando nosso lado mais obscuro, ao invés de aprender a canalizar a agressividade para coisas mais produtivas e menos caóticas. Em ‘O estranho gozo dos outros’, Philippe Julian relembra Freud em Mal estar na cultura, mediante uma leitura da conjuntura política de 1929, ano de publicação do livro, afirma que

“O homem não é em absoluto esse ser indulgente, de coração sedento de amor, que dizem que só faz defender-se ao ser atacado, mas é, ao contrário, um ser que tem que computar seus dados instintivos uma boa dose de agressividade. Para ele, por conseguinte, o próximo é não apenas um auxiliar e um objeto sexual possível, mas também um objeto de tentação. De fato o homeme fica tentado a satisfazer sua necessidade de agressão à custa do próximo, a explorar seu trabalho sem remuneração, a utilizá-lo sexualmente sem consentimento, a se apropriar de seus bens, humilhá-lo, infligir-lhe sofrimentos, torturá-lo e matá-lo.”

A sociedade, esse circo sem futuro, não apenas premia mediocridades como a do famoso apresentador de TV que humilha Fleck, sob risos de uma platéia caquética, como reverencia silenciosamente, a violência como linguagem do caos, ao mesmo tempo em que inferioriza todas as possibilidades que um ser humano tem, de expressar a bondade, a compaixão. Só é permitido ser bom quando é lucrativo, haja vista a quantidade de palmas que os “caridosos” da classe dominante recebem e que silenciam seus métodos de explorar que criam a necessidade da “caridade” como palco de autopromoção, no filme pontuado por Thomas Wayne.

Enfim, creio que o grande mérito (ideológico) do filme, para além da direção competente, do roteiro seguro e da atuação espetacular( no mlheor sentido da palavra) de Joaquim Phoenix, é nos dar a possibilidade de refletir sobre os caminhos individuais e coletivos que pautam diversas situações da nossa realidade, enquanto mergulhamos, de modo fictício, no circo sem futuro do trágico palhaço, o Curinga, aquele que pode ser qualquer coisa e pode ser coisa nenhuma, e essa parece ser, em verdade, a sua grande tragédia.

--

--