O Porta dos Fundos e o fundo do poço

Cecilia Santos
Revista Subjetiva
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4 min readDec 26, 2019

Em um momento de curiosidade mórbida me interessei em finalmente ver o Especial de Natal do grupo humorístico Porta dos Fundos que está disponível na Netflix. No caso, o do ano passado, de 2018, que foi agraciado com um Emmy. Terminei de assistir, um tanto chocada e sem saber o que pensar, e imediatamente senti a necessidade de assistir o especial desse ano pra entender como seria possível superar o nível de blasfêmia daquele episódio premiado e aí me dei conta como esses dois programas e sua repercussão ilustram bem como estamos no fundo do poço. E aí, para ilustrar meu ponto, choverão spoilers a partir de agora.

Em primeiro lugar é preciso ressaltar que os dois especiais são bastante medianos e nem tão engraçados assim, as piadas se apoiam forte na estratégia da blasfêmia e aqueles que simplesmente ignoram completamente as histórias bíblicas perdem um pouco. Então temos aí a história que o roteiro pretende e como ele se propõe a ser o mais herético possível.

Uma história fala da ultima ceia que Jesus tenta organizar como uma reunião amigável para sua despedida. Um dos apóstolos, no entanto, pensa que é uma festinha da pesada e leva drogas (nível cocaína, haxixe, etc) e chama prostitutas. Jesus fica deprimido porque Madalena (que aparece como sendo sua namorada) aparece “a serviço” e ele vê todos os seus amigos apóstolos a prostituindo. Todos bebem além da conta e usam todas as drogas disponíveis, e a festa vira — literalmente — uma grande rave, com orgias de vibradores. Jesus começa a apresentar um comportamento mais assertivo, agressivo, e vai se mostrando um pitboy que invoca o “você sabe quem é meu pais” e usa seus “poderes” arbitrariamente, inclusive para torturar e matar pessoas. Ele pede a um apóstolo que faça ocultação de cadáver, suborna soldados romanos (que aparecem fazendo alusão a PM), embriaga Judas até o coma alcoólico. E ri. Judas, aliás, é retratado com o único camarada lúcido que tenta o tempo todo evitar que Jesus se exceda. No final de tudo, após uma brincadeira que dá errado, Jesus é crucificado pelos próprios apóstolos que acusam Judas pelo ocorrido. Judas, que nada lembra, se enforca desesperado. E Jesus, na cruz, ri e faz mais bullying. Fim

O outro episódio retrata o aniversário de 30 anos de Jesus, quando a família toda está reunida esperando que ele volte do deserto para uma festa surpresa onde pretendem também contar que ele é filho de Deus e tem uma missão. Jesus aparece na festa acompanhado do seu namorado. Quando Jesus fica sabendo quem é o que tem que fazer, questiona sobre seu direito de escolher seu próprio destino e recusa. Jesus toma um chá alucinógeno e acaba concluindo que deveria aceitar a missão e quando vai se reunir de novo com a família descobre que estava sumido por 5 dias, e que seu namorado que tinha encantado a todos durante seu desaparecimento, era Lúcifer. Nesse ínterim ocorre uma luta estilo Star Wars mas sem a espada, Jesus está perdendo porque se sente confuso e então ele se lembra da frase “ele está no meio de nós” e entende então que Deus não pode ser derrotado porque está em toda parte, inclusive dentro do próprio Lúcifer, e com esse macete o derrota com um estilo meio Tarantino. Em seguida há um interessante diálogo de Jesus com Deus em que Jesus diz que não gosta dos métodos de Deus por serem muito destrutivos, e que queria tentar uma coisa do jeito dele, mais alternativa, mais diálogo, mais boa praça, e eles fazem um acordo de tentar por 3 anos. E Jesus sai em direção a Luz para cumprir sua missão de levar a palavra de Deus. Fim,

Um Jesus agressivo, sádico, torturador, prostituidor de mulheres, frequentador de orgias. O outro Jesus, gay. Adivinha qual está causando choro e ranger de dentes, abaixo-assinados, boicotes e convocação de cancelamentos? O quanto a reação a esses dois episódios fala sobre nossa sociedade, em que ser misógino, violento e assassino, porém heterossexual é muito menos ofensivo que um Jesus sensível, questionador, pacifista e gay. E aí eu poderia escrever laudas e laudas sobre isso mas é tudo tão autoexplicativo e cansativo e triste. E é isso a que se resumiu nossas vidas afinal, dois grandes episódios de Porta dos Fundos, onde de um lado estão todos aqueles que abraçam os valores de uma sociedade misógina e assassina e do outro aqueles que buscam alternativas menos violentas de se viver. Feliz Natal a todos.

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Cecilia Santos
Revista Subjetiva

degustadora de palavras. com mel. com cachaça. com pimenta.