O que a Pombagira tem a ver com o feminismo?

joice berth
Revista Subjetiva
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10 min readNov 5, 2018

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Sendo ou não adepto das religiões de matriz africana, todo brasileiro já comeu seu docinho de Cosme e Damião, já saudou Ogum sabe-se lá o porquê, já pulou sete ondas ou jogou flores brancas para Iemanjá no réveillon. Ou pelo menos já ouviu falar dessas tradições. Ainda que carreguem o racismo latente da nossa sociedade, a Umbanda, o Candomblé, a Quimbanda e todas as outras manifestações religiosas de origem africana, têm muitos adeptos de todas as etnias, frequentadores escancarados ou enrustidos e curiosos de todas as espécies, inclusive de outras religiões.

Seja pela apropriação cultural que tenta branqueá-las, seja pelas dinâmica do mito da democracia racial, essas religiões sempre despertaram a curiosidade e ganham cada vez mais espaço na sociedade. A princípio, dentro dos terreiros, todas as representações do ser humano são aceitas e tem seu espaço e, a beleza inegável dos cultos, envolvidos em mistérios até para quem atua diretamente no centro dessas religiões, não as deixam passar despercebidas diante do olhar da sociedade. Isso as torna alvo tanto do fascínio, quanto dos preconceitos e moralismos que fazem parte da nossa formação.

O Candomblé, que carrega escancaradamente a sabedoria despretensiosa da ancestralidade africana, atualmente tem em seu culto a adaptação que foi historicamente necessária, a alma brasileira, que embora mantenha muito do seu lugar de origem na sua expressão ritualística, assimilou muito bem as nuances da formação do nosso povo.

A Umbanda, considerada genuinamente nacional, embora sejam facilmente encontradas expressões religiosas muito parecidas em outros lugares da América Latina, tem o melhor das três representações religiosas atreladas às raças da base da formação do Brasil, quais sejam: o catolicismo cultuado pelos portugueses e condutor do violento sincretismo que se deu já no transporte dos cultos africanos para o Brasil, os orixás representantes da natureza cultuados pelos negros africanos e a pajelança cheia de atributos de cura e purificação espiritual trazidos pelo forte senso de ancestralidade dos indígenas (ou povos tradicionais). A Umbanda tem ainda um vínculo com os ensinamentos básicos do kardecismo ou espiritismo como era mais comumente chamado até o final do século passado, muito embora, encontramos na literatura do venerável Táta Tancredo, maior representatividade da Umbanda Omoloko, indícios muito coerentes que afirmam que a Umbanda também tem origem africana.

Nessa mistura mora a riqueza e a beleza dessa religião. Se em solo físico a democracia racial não acontece, no mundo espiritual que nos tangencia a experiência de encarnados, ela está presente pacificamente, pois as entidades da Umbanda bem como os exuberantes e comprometidos Orixás, tão solicitados pela fé que despertam nas pessoas através de seus passes calmos e acolhedores, não diferenciam as pessoas e rejeitam as normas sociais e rótulos segregacionistas que separam a humanidade por valores morais duvidosos e parciais, mais condizentes com a cultura católica (autoritária e inflexível) que traz na sua raiz, uma bipolaridade perigosa que estabelece o conceito de bem e mal de acordo com os padrões e crenças de seus sacerdotes e condutores espirituais.

Nas religiões de matriz africana, mesmo com a forte imposição dos valores católicos influenciando os cultos e as doutrinas, há uma naturalização positiva da condição humana e uma liberdade de expressão do ser tal qual ele é. Nem a sexualidade, nem a classe social, nem os padrões de beleza são usados para hierarquizar pessoas. Se observarmos com cuidado, as lendas dos Orixás ou Itãs, como são tradicionalmente conhecidos pelos adeptos, embora sejam histórias e/ou alegorias que indicam um pouco da especificidade desse ou daquela representação espiritual, são entre outras coisas, uma maneira sutil de aproximar o divino, o sagrado, do humano comum pautado por reações erráticas, desejos vis, caprichos e atitudes genuinamente realistas, misturadas ao potencial mágico dessas criaturas sagradas intimamente ligadas a natureza. Oxum, por exemplo, é o arquétipo da mulher sagaz e que ama a si mesma; Oxóssi é o solitário e rebelde caçador; Ogum é combativo e violento quando contrariado; Iemanjá a mãe protetora e possessiva com os seus, etc.

Nem a sexualidade é deixada de fora. Enquanto algumas religiões atribuem à sexualidade um traço sujo, obscuro e que não evoca virtudes, as representações dos orixás, por exemplo, reafirmam a livre expressão da sexualidade como caminho para a totalidade do ser, para além dos fins de procriação, mas também como troca e conexão amorosa e física. Nesse contexto, destacamos a figura das Senhoras Pombagiras, uma das entidades mais populares e marginalizadas dos terreiros brasileiros, muitas vezes até pelos próprios adeptos que apresentam a colonialidade entranhada no comportamento e na subjetividade.

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Muitas distorções e informações equivocadas permeiam os inúmeros terreiros espalhados pelo país. Esse é um problema que está inserido no seio da religião, tanto pelo desconhecimento dos dogmas específicos que se perderam quando do transporte forçado de seus locais de origem para cá e, que explicariam com precisão e coerência os pilares e as bases das liturgias, quanto pelos estereótipos raciais e os diversos preconceitos e moralismos que aqui assimilaram em contato com o colonizador.

Em um passado não muito distante, a repressão a terreiros de Umbanda e Candomblé eram violentas, muitas casas fecharam as portas por não suportar a invasão policial e os perigosos ataques de pessoas racistas e preconceituosas, intolerantes com outras práticas que diferem das suas.

A perseguição policial diminuiu, muitos terreiros são atualmente regulamentados e existem órgãos sérios que fiscalizam e dão segurança para os dirigentes e sacerdotes tocarem suas casas de axé. Mas a perseguição social, segundo os jornais nos apontam, está longe de chegar ao fim. Muitos destes que, são frequentadores ocultos inclusive, na ânsia racista de esconder que gostam de “bater tambor”, debocham e usam o escárnio para ofender e diminuir a importância cultural e social dessas religiões. Atitude que faz parte da rejeição do Brasil às suas raízes culturais e formação africana e indígena. Os meios de comunicação são um bom exemplo disso, sempre mostrando as representações religiosas dessa natureza, de maneira estereotipada, desrespeitosa e contribuindo para a desinformação e aumento do preconceito.

Se o racismo é tão forte que “afasta” ou envergonha adeptos racistas das práticas religiosas, podemos dizer o que sobre o machismo? Que ele também está presente nesses espaços.

Não por acaso, a ocorrência de mulheres à frente dos terreiros deixa brecha para o outro lado da repressão e da repulsa com que essas religiões são tratadas. As matriarcas africanas detinham todo o potencial místico e ritualístico do Candomblé e ele era passado de mãe para filha em muitos casos. Com frequência reconhecemos o racismo dentro e fora dos terreiros, mas o machismo também está lá. Daí entram em cena as sensuais e libertárias “moças das encruzilhadas”, como são conhecidas pelos frequentadores e adeptos.

Em uma gira (reunião espiritual e ritualística realizada nos terreiros de Umbanda e Candomblé), quando essas mulheres chegam, hipnotizam a todos os presentes. Quase sempre muito enfeitadas e luxuosas(o que depende das doutrinas de cada casa de axé, claro), exalam poder pessoal mesmo nas casas onde a roupagem dos médiuns ( pessoas que fazem o trabalho espiritual de “incorporação” de entidades) é simples. Todos querem chegar perto, todos querem presentear, todos querem ouvir os ensinamentos ou fazer pedidos variados, principalmente para a parte afetiva.

Ao mesmo tempo, são temidas e carregam estigmas muito comuns aos utilizados pelo patriarcado para manter os privilégios da supremacia machista. Com frequência são associadas a prostituição, a vulgaridade, ao prazer viciado e descritas como lascívia.

Cabe destacar que a associação a prostituição não seria ofensivas em si, mas o são a partir do momento em que temos plena consciência de que as prostitutas também são estigmatizadas, difamadas e que a sociedade patriarcal naturaliza a violência e a desumanização com que são tratadas essas mulheres, sem assumir que em muitos casos essas profissionais do sexo são filhas da precariedade, do desamparo, da falta de opções de subsistência e das desigualdades sociais causadas pela própria cultura patriarcal, que impedem que mulheres se desenvolvam e se emancipem pelos caminhos do trabalho (considerado) formal e construam sua ascensão socioeconômica da mesma forma que os homens.

Mas o fato é que as Pombagiras concentram em si o arquétipo da mulher livre (não libertina) e demonstram todo poder pessoal que é historicamente reprimido no cotidiano feminino. Podemos dizer, seguramente, que a Pombagira seria a representação real da mulher caso a supremacia masculina não tivesse criado uma série de mecanismos preconceituosos e hierárquicos que cerceiam a sua autonomia plena.

Os aconselhamentos são verdadeiras aulas de autovalorização, autopreservação, auto-cuidado, autoestima e desenvolvimento do poder pessoal, da independência e desapego afetivo. Elas em geral são procuradas para conselhos amorosos, mas esses conselhos são sábios e carregados de verdades que contrapõem a romantização dos relacionamentos que aprisionam mulheres.

Contudo, a configuração técnica da religião deu e ainda dá margem para fraudes, mistificações e manipulações por parte de pessoas com caráter deturpado ou saúde mental desequilibrada, que se infiltram nesses meios com objetivos escusos ou em busca de um lugar para dar vazão aos comportamentos problemáticos, induzindo seus adeptos menos atentos pouco hábeis em identificar essas dinâmicas, a enganar pessoas de boa fé em nome da religião. E isso não é exclusividade da Umbanda, Candomblé e afins.

A incorporação, fenômeno básico das práticas dessas religiões, embora com conceitos científicos estabelecidos, é um componente subjetivo, não sendo possível uma identificação imediata de falhas por parte dos frequentadores mais leigos. Ainda assim, existem casas e terreiros que trabalham na mais rigorosa seriedade e ordem doutrinária.

Por essas características, o arquétipo da Pombagira se aproxima muito da atuação e dos conceitos da luta feminista. Ela nos ensina que amor se vive com intensidade mas também com responsabilidade e preservação da individualidade, e que devemos lutar muito pela autonomia que nos subtraíram para manter os privilégios da masculinidade. Nos ensina que a beleza e o poder independem da imagem e dos padrões estabelecidos pela sociedade, e que o charme é uma arma poderosa, que brota de dentro para fora e é sim resultado da nossa relação com nós mesmas. Elas são sempre hipnotizantes, mesmo quando seus médiuns não estão de acordo com os padrões estéticos que a sociedade tem como ideal. E elas são livres (não libertinas), tanto no pensamento quanto no comportamento, questionadoras dos valores morais de uma sociedade que foi estruturada para subjugar mulheres. Mas não são vulgares, tem muita retidão de caráter e ética. Ao contrário do que dizem, são sim sensuais numa manifestação oportuna do seu poder pessoal, mas extremamente respeitosas com os sentimentos mais sublimes e as uniões baseadas no amor fraterno e no respeito.

A mulher que se descobre e vive de acordo com suas crenças pessoais, inclusive respeitando as escolhas de outras mulheres e deixando de lado as rivalidades incentivadas pelo patriarcado, tem o domínio do seu poder pessoal e está apta a reescrever sua história, se desvencilhando das práticas machistasm, lutando sabiamente para que elas sejam dizimadas da sociedade.

Os africanos escravizados foram duramente reprimidos nas suas manifestações culturais e religiosas, lançando mão do artifício que conhecemos por sincretismo, que nada mais era do que a associação dos orixás africanos aos santos cultuados pela igreja católica, a fim de burlar parte da repressão aos cultos. Mas, as religiões africanas não possuíam o mesmo conceito binário e limitante de “Bem” ou “Mal”.

Logo, as representações dos orixás apresentavam características humanas condenadas pela igreja católica. Isso deu origem a demonização de algumas entidades e/ou orixás. Quanto mais próximo do humano mais próximo do demônio católico. E a Pombagira, por ser livre, sensual, e muito diferente das representações femininas clássicas e passivas da igreja católica, despertam um temor e uma rejeição muito frequente:

“O patriarcado é um sistema de exclusão, que coloca as mulheres em nível de inferioridade em relação aos homens e as subordina ao espaço privado, a casa e a prole. “São múltiplos os planos de existência cotidiana em que se observa esta dominação” (SAFFIOTI, 1987, p. 47).

Assim sendo, a projeção dessa lógica está em todos os espaços possíveis de ocupação feminina. O comportamento que desponta como sustentação dessa lógica é avesso ao das Senhoras Pombagiras. Essa característica arquetípica somou-se à demonização promovida pelo sincretismo que atribuiu aos orixás que não se encaixavam no perfil de “santidade” a alcunha de demônio (lembrando que nas religiões africanas o conceito de bem/mau é mutável e bem diferente do católico, muito mais próximo da complexidade que compõe o humano). Sendo a Senhora Pombagira uma espécie de correspondente feminina do temido Orixá Exu (e das entidades de Umbanda que trabalham sob essa nomenclatura espiritual), é erroneamente associado ao demônio cristão, “herdou” de Exu o preconceito que se somou a misoginia e machismo presentes em nossa sociedade.

E por que devemos esmiuçar, ainda que de maneira genérica, esses conceitos? Porque estamos falando de intolerância, de racismo religioso e discutindo caminhos para que ela seja eliminada. Um deles é derrubar a lógica racista, que confina tudo que descende da cultura afro na marginalização e na vulgaridade. Outro é conhecer e entender, ainda que a crença não seja compartilhada por todos, uma vez que vivemos em um país que aspira ser laico.

Onde existir seriedade no trabalho espiritual com as Senhoras Pombagiras, haverá um trabalho de empoderamento individual e coletivo dos mais eficientes. Não haverá “trabalhos” de amarração ou de separação de casais, como muito se propaga por aí. Isso não é religião, é charlatanismo. Para a entidade da esquerda espiritual, mulher boa é mulher que cultua sua autonomia e se basta, tratando o amor como sentimento transformador e não como moeda de trocas mundanas e de vazão de comportamentos passionais e irresponsáveis.

Ainda que essas religiões não tenham a aderência da grande maioria da população, merecem o respeito e liberdade de seu culto, limpo de componentes racistas e ataques preconceituosos. Da mesma maneira deve ser o feminismo estudado e compreendido como uma luta política e social por equidade e emancipação de corpos subalternizados, afastando os ataques de ódio recebidos sistematicamente por pessoas que são contra a vivência da mulher com autonomia e liberdade de ação e expressão, longe do papel secundário a que estamos inseridas em todas as áreas estruturantes da sociedade.

E o conhecimento básico e compreensão desse que é dos mais controversos, repudiados e amados mitos das religiões de matriz africana pode ser um bom começo.

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