O que está por trás das Epidemias de Dança?

E o que isso tem a ver com o fato de você dever curtir bastante o Ano Novo.

Thiago Süssekind
Revista Subjetiva
8 min readDec 27, 2017

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Gravura de Henricus Hondius: retrata-se um grupo de mulheres acometidas pela “praga”. é baseada em um desenho de Pieter Brueguel, que reivindica ter presenciado uma epidemia em 1564.

Apesar de o tema passar batido nas aulas de História da escola, trata-se de um assunto que intriga historiadores e outros estudiosos do mundo inteiro: o porquê de terem existido “epidemias de dança”. Mas o que foi isso, afinal?

Elas podem ser definidas como uma “praga” que se alastrou, fazendo com que várias pessoas começassem a dançar sem parar – literalmente – na Idade Média e na Renascença. Tanto que, nos mais diversos episódios deste tipo registrados no curso da História, houve mortes originadas pelo cansaço extremo — ou então, ao menos, em decorrência de outras possíveis consequências da epidemia, como é o infarto.

Não é um mito: dentre historiadores, não há a menor dúvida de que os casos dos quais se tem registros realmente ocorreram. O professor estadunidense John Waller, que tem um livro específico sobre o tema (“A Time to Dance, A Time to Die: The Extraordinary Story of the Dancing Plague of 1518", sem versão traduzida para português), afirma ser “incontestável” que o evento de fato aconteceu.

O episódio mais notável faz aniversário de 500 anos por agora. Em julho de 1518, dizem os documentos oficiais que uma mulher de nome Frau Troffea, da cidade de Estrasburgo (atual França, na época parte integrante do Sacro Império Romano-Germânico), começou a dançar freneticamente na rua sem nenhum motivo aparente. Logo, dezenas de outras pessoas se juntaram a ela. E não conseguiam parar.

Pintura que, supostamente, retrata a epidemia de 1518.

Todos os relatos cofiáveis convergem em vários pontos, e um deles é o de que a adesão à dança era involuntária. Diz-se que as pessoas gritavam em dor, pediam ajuda aos berros e clamavam por misericórdia. Foi assim que, como também relata o físico renascentista Paracelsus, se deram os eventos de 1518.

No terceiro dia de dança – cessada de modo temporário unicamente quando os participantes colapsavam e caíam no sono –, Frau Toffea estava coberta de suor e com os seus sapatos manchados de sangue. Paracelsus diz que, no início, a população de Estrasburgo acreditou se tratar apenas de uma tentativa dela de irritar o marido. Mas conforme o dia foi passando, viu-se que Toffea estava, genuinamente, presa naquela compulsão.

As autoridades locais, na tentativa de controlar a epidemia, prescreveram “mais dança” e até instalaram um palco no coração da cidade, por exemplo, para que os dançarinos se movessem livremente tanto durante o dia quanto à noite. A instalação contava até com músicos.

Era uma tentativa de conter a adesão da população da cidade da Alsácia, pois o cansaço dissiparia a multidão pela praga infectados, que já somavam, depois de uma quantia de só 30 pessoas no começo, mais de 400 indivíduos. No entanto, a iniciativa não trouxe os resultados esperados, e rapidamente vários cidadãos chegaram à morte por exaustão. A dança só foi parar no fim do verão, em agosto, depois do falecimento de vários dos participantes e dos pés de outros inviabilizarem qualquer tipo de movimento.

E não se trata de um episódio único e isolado na História: ao menos seis outros casos aconteceram entre 1017 e 1518, em territórios hoje pertencentes à Suíça, à Alemanha, à França e aos Países Baixos (além de países adjacentes, como Luxemburgo e Bélgica). A “dançomania” chegou até na Itália, onde recebeu o nome de “tarantismo”, devido às suspeitas de que tarântulas fossem as responsáveis pelas epidemias.

E já no século seguinte do episódio mais famoso e documentado, nos anos 1600, esses eventos cessaram e se tornaram parte apenas do fascínio de estudiosos. Qual seria, então, a razão por trás das epidemias de dança? Por que elas pararam de acontecer? E por qual razão elas existiram?

O já mencionado John Waller estudou o tema com afinco, e chegou à conclusão de que a “praga” tratar-se-ia de um caso de histeria em massa. É um fenômeno sociopsicológico que se caracteriza pela manifestação dos mesmos sintomas histéricos por um grupo de indivíduos de uma mesma comunidade, podendo ser ela grande ou pequena.

Um caso famoso aconteceu na Tailândia neste século, mais especificamente em 2008. Várias garotas – cerca de duas dezenas delas – de uma mesma escola começaram a desmaiar, enquanto outras gritavam ou choravam, mostrando sinais de desespero. Mesmo sem haver uma razão clara para isso.

No entanto, é sim sempre possível identificar uma causa. Se Paracelsus, ao estudar as epidemias de dança ainda no século XVI, apostou em frustração sexual, Waller vai por um outro caminho.

Outra pintura de Brueguel, dessa vez com dançarinas sendo carregadas e músicos ao lado.

De acordo com ele, é possível verificar que, anos antes de cada um desses eventos, dias difíceis foram vividos. O surto de 1374, o segundo mais bem documentado – e que aconteceu em Aquisgrano, ou Aachen, atual Alemanha – ocorreu logo após uma enchente devastadora, o que ocasionou em menos comida até em relação à já baixa média dos tempos medievais e em estresse excessivo enquanto se vivia nos tempos de peste negra, que dizimou quase 1/3 da Europa.

Durante a epidemia de 1518, os habitantes de Estrasburgo estavam sofrendo ainda mais fome do que o usual devido à uma sucessão de péssimas colheitas, que gerou preços inimaginavelmente altos dos grãos enquanto a moral dos cidadãos já estava ferida pela sífilis, pela varíola e, ainda, pelos efeitos que restavam da mesmíssima peste bubônica.

Waller ainda nota que, conforme mostrado por inúmeros outros estudos, é muito mais fácil entrar em transe caso se acredite que isso possa acontecer, o que explica religiosos adentrando neste estado, seja em rituais primitivos, de possessão – como os que geraram a constatação, dos Andes e do Ártico – ou até mesmo da atualidade. E o estado de transe explicaria o nível elevado de resistência dos participantes involuntários da dançomania.

“Aqueles que viviam perto dessas poderosas vias navegáveis ​​comerciais [o Rio Reno e o Rio Mosela] compartilhavam um profundo medo de espíritos irritados capazes de infligir uma maldição de dança. E é só nesta região, próxima da porção ocidental do Sacro Império Romano, que as epidemias de danças confirmadas ocorreram. Além disso, esses surtos quase sempre atingiram as proximidades de cidades afetadas por epidemias de dança anteriores”, escreve ele.

Contudo, permanece uma questão: por qual motivo teriam os episódios de histeria cessado? Apenas porque a superstição parou de existir, como aposta o historiador americano?

Não é no que apostam outros pesquisadores. Eles, relembrando um pouco Paracelsus, lembram da repressão moral existente na Idade Média. Afinal, trata-se do período de maior religiosidade de toda a História do continente europeu.

Também se verifica que eventos nos quais indivíduos possam escapar, temporariamente, da individuação do ser – de libertação mesmo, não só sexual – existiram em quase todas as civilizações ocidentais da Antiguidade, bem como na atualidade persistem. Mas existiu um breve momento de pausa, mesmo que não da forma exagerada e que antes de Jacques Le Goff se concebia como verdade absoluta: os tempos medievais.

Na Antiga Babilônia, a libertação durante as Seceias – espécie de predecessora do Carnaval – chegava ao ponto em que um escravo, durante os dias de festividade, assumia o papel de rei. O escolhido vestia-se como o monarca, alimentava-se da mesma forma e até mesmo dormia com suas esposas. Ao final, porém, ele era chicoteado e morto por enforcamento.

Havia ainda em Roma as Saturnálias e as Lupercálias. As primeiras ocorriam no solstício de inverno, em dezembro. Já as segundas, em fevereiro. Ambas se tratavam de festas que duravam vários dias, com comidas, bebidas e danças. Os papeis sociais, assim como na Mesopotâmia, também eram invertidos temporariamente, com os escravos colocando-se nos locais de seus senhores, e estes colocando-se na figura de escravos.

Representação das Saturnálias por Römer.

Isso sem contar que, na Roma Antiga, ainda persistiam os “bacanais” – os rituais que envolviam sexo e álcool em homenagem ao deus Baco, a versão romana de Dionísio. Também na Grécia se celebravam festividades similares. Com o surgimento da Igreja Católica, porém, surgiu a necessidade de se adequar o festival pagão aos padrões da fé cristã – como se apropriou das celebrações do solstício de inverno do hemisfério norte, que se transformaram no Natal.

No caso das festividades que mais envolviam sexo e álcool, a Igreja criou a quaresma, de forma que as festas ocorressem antes do período religioso. E também se aboliu a inversão de papeis sociais – uma vez que assim se assumia também a inversão entre Deus e o Diabo – e dessa forma se concebeu o Carnaval como hoje o concebemos.

A origem do Carnaval, além de pagã, também é relacionada aos prazeres do corpo. E a sua nomenclatura já indica isso: ela surgiu de “carnis valles”, sendo que “carnis” em latim significa carne e “valles” significa prazeres.

Na Idade Média, a adequação acabou sendo forte demais, apontam alguns estudiosos. E, assim, diz-se que não havia um período de festividades para aliviar o estresse acumulado dos tempos difíceis de enfermidades e fome. E, dessa forma, após uma elevação dos já altos níveis de estresse causados por motivos externos, como colheitas ruins – junto ao medo dos espíritos, como apontou Waller – foi criado o ambiente perfeito para uma histeria em massa personificada nas epidemias de dança.

E na Renascença, várias festas e tradições clássicas foram resgatadas, mesmo que de forma conjunta com a religiosidade da Igreja ou, depois, das religiões protestantes. Hoje, ainda temos essas festividades de “libertação”. Não é somente o caso do Carnaval. Mas o Ano Novo, uma celebração por natureza ligada às bebidas alcoólicas, também.

Então, quando for comemorar o novo ano, pense nisso: é importante para a espécie humana se soltar um pouco, mesmo que temporariamente. Extravasar, livrando-se um pouco do estresse acumulado. Pode ser por isso que não há mais epidemias de dança: afinal, agora dançamos por livre e espontânea vontade. Quando nas datas apropriadas.

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Thiago Süssekind
Revista Subjetiva

Líder Estadual do Acredito-RJ (2020-2022) | Advogado | Direito-UERJ | Contato: tsussekind@hotmail.com | Twitter: @ThiagoSussekind