O que faz um bom personagem?

Uma análise da Val em Que Horas Ela Volta?

Bruno Tavares
Revista Subjetiva
8 min readSep 11, 2020

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Regina Casé no filme Que Horas Ela Volta | Fonte: Divulgação

Histórias marcantes, tanto no cinema quanto na TV, são construídas com a ajuda de personagens convincentes. Contudo, construir tais indivíduos é sempre um desafio. Isso porque cada uma das ações do personagem deve revelar direta ou indiretamente características de sua psique.

Pense, por exemplo, na(o) protagonista do seu filme favorito: como ela(ele) se veste? Como fala? Como se porta? Como reage quando é pressionada(o)? As respostas para essas perguntas nos auxiliam a entender o caráter desta pessoa e nos dizem muito sobre ela.

Quanto mais crível for o personagem, quanto mais coerente soarem suas ações, mais o público irá acreditar na história que está sendo contada na tela. Seguindo alguns conceitos propostos por Joe Boggs e Dennis Petrie no livro The Art of Watching Films e ideias apresentadas por Syd Field em Manual do Roteiro, decidi analisar a construção e caracterização de uma personagem querida do cinema nacional: a Val, interpretada por Regina Casé, no filme Que Horas Ela Volta? (2015).

Protagonista da trama dirigida por Anna Muylaert, Val é uma pernambucana que vai para São Paulo em busca de melhores condições de vida para sua filha Jéssica (Camila Márdila). Na cidade, ela passa a trabalhar como empregada doméstica e babá na casa de Bárbara (Karine Teles) e Carlos (Lourenço Mutarelli). Depois de alguns anos, Jéssica se muda para São Paulo para prestar vestibular e esse fato desestrutura as relações estabelecidas até então entre Val e seus patrões.

A partir dessa premissa observei algumas situações emblemáticas de Que Horas Ela Volta? que auxiliam o público a entender quem realmente é a Val:

Caracterização por aparência

A primeira cena do filme nos mostra Val ainda jovem, cuidando do pequeno Fabinho à beira da piscina. Ele a convida para entrar, mas ela recusa. A piscina como um lugar proibido para Val será inclusive retomado posteriormente na narrativa. De toda forma, este é o contato inicial do público com Regina Casé neste papel e isso já diz muito.

Boggs e Petrie afirmam que a maioria dos atores projetam algumas qualidades em seus personagens no minuto em que aparecem em cena. E isso se concretiza aqui. Regina Casé é conhecida por sua calorosidade, descontração e afetuosidade. Por conta disso, o espectador constrói inconscientemente a ideia de que Val terá algumas destas características, ou mesmo todas, que são inatas da personalidade da atriz e de outros papéis que ela interpretou.

Caracterização por diálogo

Os personagens de um filme revelam muito sobre si quando falam. Seus verdadeiros pensamentos e emoções podem ser sugeridos tanto pela maneira como conversam quanto pela escolha de palavras. A modulação da voz, as pausas entre as frases, a intensidade do diálogo… Cada detalhe expressa uma pequena faceta daquele indivíduo, desde seu nível econômico-social, passando por sua educação formal e chegando na maneira como sua mente funciona.

Na cena do filme citada acima, é possível descobrir bastante sobre a Val. Por seu sotaque, entendemos que ela é de Pernambuco. Pela escolha de palavras, percebemos que ela teve uma origem simples e provavelmente possui um nível de estudos básico. Entretanto, o tom afetuoso com que ela conversa com a criança dá a entender que ela tem muito carinho por ele.

Há então uma passagem de tempo e na cena seguinte vemos Val conversando com um Fabinho (Michel Joelsas) crescido. O adolescente confessa a ela que foi dispensado pela namorada e pela escolha de palavras de Val torna-se evidente que ela é protetora e possui uma relação íntima com o garoto. Já com os patrões, Val se comunica com deferência, sempre se colocando em uma posição servil.

Com Jéssica, a personagem de início faz uma escolha de palavras subserviente, quase de maneira a pedir desculpas pelos anos em que esteve ausente. Posteriormente, quando a relação entre elas se agrava, o tom de Val se torna urgente com o pânico de que a filha se comporte mal na frente dos chefes.

Caracterização por Ações Externas

Como já dizia Syd Field, personagem é ação. Assim como nós, as pessoas que vemos nas telas podem disfarçar suas intenções por meio de seus diálogos, usando meias palavras ou dissimulações. Contudo, partindo do princípio de que o personagem em questão não se trata de um mero instrumento da narrativa, é impossível dissimular as próprias ações o tempo todo.

Tudo o que ela(ele) faz tem um propósito e é consistente com sua personalidade. Quando exposto a situações opressivas emocionalmente, o personagem tende a mostrar sua verdadeira essência e, depois de reveladas suas cores, o indivíduo não consegue mais esconder quem é.

No filme de Anna Muylaert existem diversas situações em que Val, submetida a grandes pressões, deixa transparecer sentimentos através de atos. Uma delas é a cena da piscina. A essa altura do longa sabemos que este espaço foi implicitamente proibido a ela por seus patrões. Val nunca entrou nas águas refrescantes para aliviar o calor ou se divertir, nem mesmo em seus dias de folga. A piscina é, inclusive, palco para um ponto de cisão na narrativa quando Jéssica, ignorando este acordo não dito, entra nela para brincar com Fabinho.

Jéssica adivinha onde é que eu to? | Fonte: Divulgação

Com o acirramento das relações entre Jéssica e os donos da casa, Val é exposta a altos níveis de stress. A situação se deteriora a tal ponto, que Jéssica passa a morar em outro lugar. Até então, Val não consegue entender o comportamento da filha O ponto de virada nessa situação ocorre no dia do vestibular. Após receber a notícia da aprovação de Jéssica, Val extravasa sua alegria em uma comemoração privada, ao posteriormente entrar na piscina semi-esvaziada. Lá dentro ela liga para a filha, conta onde está e se diz muito orgulhosa.

Ao ocupar um espaço que lhe era proibido, Val passa a entender melhor a filha e vê na aprovação da garota um novo futuro para as duas. O espaço que deveria estar cheio de água é preenchido com o silencioso brado de liberdade da pernambucana. Ao entrar na piscina Val quebra a dinâmica da casa-grande-senzala em que vivia. A partir daquele momento ela sabe que possui outra alternativa de vida. Não precisa mais ter uma comida separada, de menor qualidade do que a dos patrões, nem passear com um cachorro que não é seu, ou mesmo morar em um quartinho quente e apertado enquanto na mesma casa existem cômodos amplos e arejados.

A aprovação da filha lhe concede a força que faltava para que ela também conquiste sua independência, vá em busca de condições de trabalho justas e compense os anos de distância física e afetiva.

Caracterização por contrastes

Para Boggs e Petrie uma das técnicas mais efetivas de caracterização de um personagem é contrastando-o com outro. Atitudes, comportamentos, opiniões, estilo de vida, aparência e outros elementos, quando opostos, auxiliam a audiência a desvendar a essência do protagonista.

Em Que Horas Ela Volta? o contraste se dá entre Val e Bárbara. A construção do roteiro nos revela que ambas são pessoas de mundos distintos, mas que convivem juntas, tendo pouco em comum.

Bárbara é a típica madame paulistana, repleta de privilégios. Se mostra feliz que a filha da empregada venha do nordeste para tentar o vestibular mas é afrontada ao saber que a garota deseja o mesmo curso do filho. Com ciúmes da relação entre Val e Fabinho, ela busca uma abertura com o jovem apesar de lhe dar pouco carinho.

A personagem tenta passar uma imagem externa desconstruída e moderna, enquanto internamente é tradicional e rejeita a mobilidade social ascendente. Prova disso são seus diálogos em inglês com o marido para que Val não entenda o que dizem. Se realizado em dias atuais, não espantaria que Bárbara afirmasse, por exemplo, que as pessoas em situação de rua não vão para os abrigos porque não querem ter responsabilidades e preferem dormir ao relento pois é atrativo.

Val e Dona Bárbara | Fonte: Divulgação

Contrastando com Bárbara temos Val, que como sabemos, é subserviente, amorosa e humilde. Incapacitada de cuidar da própria filha por muitos anos, ela devota parte de seu amor maternal a Fabinho e constrói com ele uma relação de cumplicidade.

Informal e um tanto cômica, Val busca diversão na simplicidade. Sua falta de instrução é evidente, mas ela usa essa característica para incentivar a educação de Jéssica. Ao ver a filha ignorar as regras sociais, Val se aflige, mas ao final percebe que tais normas são criações feitas apenas para manter a diferença entre classes. À sua maneira, ela é mais do que o arquétipo da boa mãe. Val é o retrato de milhões de mulheres Brasil afora.

O Protagonismo da Empregada Doméstica

Vale incluir aqui um elogio à Anna Muylaert que ousou criar e dar protagonismo à Val. As empregadas domésticas são papéis comuns no cinema brasileiro desde o período das chanchadas (1940–1950 aproximadamente). Carregadas de estereótipos, elas costumam ser retratadas como negras, pobres, nordestinas e por vezes integram o núcleo cômico das produções audiovisuais. Ainda que Val carregue algumas dessas características, Muylaert dá a ela profundidade e amplitude emocional.

Outro diretor que também faz um trabalho interessante com relação a estas profissionais é Gabriel Mascaro em seu documentário Doméstica (2012). No longa, o diretor pede que sete adolescentes filmem o dia a dia das profissionais que trabalham em suas casas. Partindo desse ponto, o documentário mostra as interações de carinho, amizade e relações de poder entre ambas as partes.

Voltando ao filme de Muylaert, é importante dizer que ele recebeu algumas críticas pelo comportamento excessivamente servil de Val e sua quase adoração aos patrões. Contudo, essa é a postura padrão de muitas trabalhadoras domésticas e que só passou a mudar muito recentemente. Além disso, a meu ver, existe uma redenção final que é coerente com a construção da personagem. A chegada de Jéssica e suas atitudes de Val a partir de então levam a um ponto de não retorno e completam o arco narrativo do filme.

“No escuro do cinema, você conseguiu me ver”

A frase acima foi dita à Anna Muylaert por uma jovem que assistiu ao filme e se identificou com a história de Jéssica. A diretora conseguiu transpor para as telas a narrativa de outras tantas Jéssicas, Fabinhos e Bárbaras. Acima de tudo, ela e Regina Casé deram vida à Val, uma protagonista memorável que merece destaque no cinema nacional pela forma como foi escrita e vivida.

Val é a prova viva de que bons personagens se revelam ao público de diversas maneiras. Os filmes em que aparecem devem ser assistidos mais de uma vez pois só assim é possível admirar e captar a riqueza de detalhes que os compõem. Além dos pontos indicados aqui, existe uma gama de situações que caracterizam a protagonista em Que Horas ela Volta?. Por tudo isso, fica aqui o desejo de outras Vals no cinema brasileiro.

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Bruno Tavares
Revista Subjetiva

Um publicitário que adora viajar, seja nos livros, nos filmes ou na vida real