O quebra cabeça do Gabriel o Pensador
A minha primeira lembrança musical foi com o rap do Gabriel o Pensador. Presente do meu pai que, até hoje, nem imagino como ou porque ele comprou aquele cd.
Talvez o destino desse cd sempre foi os meus ouvidos. Meu pai funcionou como intermédio para que esse trajeto, enfim, se cumprisse. Gosto de pensar assim. É mais poético. Aliás, gosto de pensar assim porque foi cantando Cachimbo da Paz que nunca mais parei de escutar rap.
Decidi retomar aquele álbum. Revisitei, dei um oi para ele, agora por streaming (o tempo muda, Padawan), estudar um pouco aquele quebra cabeça e sacar quem era, e o que cantava, aquele rapper que me abriu as portas.
Contexto
Quebra Cabeça foi lançando no dia primeiro de julho de 1997. Bem, no recorte da década de noventa, passávamos por algumas coisas. Plano Collor e seu overnight. O primeiro processo de impeachment, logo após a primeira eleição democrática. Estávamos engatinhando (ou ainda estamos, não é mesmo?) sobre entender e conviver com a nossa democracia, após duas décadas de ditadura militar.
Por falar em Collor e em Gabriel o Pensador, tivemos o governo censurando (tô falando que ainda estamos engatinhando), em 1992, a música Tô feliz (matei o presidente), do rapper. Sabe como é né? A arte assusta e provoca medo quando põe o dedo na ferida.
Dois anos depois, teríamos o Fernando Henrique Cardoso eleito para presidir o Brasil e, no dia primeiro de julho, a adoção do Plano Real.
Na mesma década, perdemos Ayrton Senna e os Mamonas Assassinas, ambos vítimas de acidentes. Um carro e um avião, num intervalo de tempo de dois anos.
Nossa seleção brasileira foi tetracampeã, após amargar um jejum de vinte e quatro anos sem títulos. Quatro anos após aquela água batizada dos argentinos.
Também foi na década de noventa que o Racionais MC bateu a porta com Holocausto Urbano.
E, olha só, ainda na década de noventa, nesse recorte, tivemos a aparição do E.T de Varginha e a clonagem da ovelha Dolly.
O passo, agora, era sacar o que se passava na cabeça do Gabriel.
O que tanto pensava o pensador?
Quebra Cabeça
Quando voltei para o álbum, entendi que ele trazia em cada peça um pequeno retrato, como se você abrisse a caixa do seu quebra cabeça e encontrasse tudo bagunçado, mesmo que saiba o que dali irá se formar, com o desenho estampado na caixa.
Mas que peças eram essas?
Dúvidas, tristeza, pobreza, violência e, porque não, reverência?
O país estava caótico, confuso, em reconstrução. Tudo isso num curto intervalo de tempo. Então as peças são jogadas no carpete pra irmos pegando uma por uma, montando e, assim, zerando aquele quebra cabeça para sermos premiados com a imagem que se formaria?
Mas que imagem é essa, hein?
Do garoto periférico nascido da violência em nosso país, lá em Pátria que me pariu ou da violência descrita em Bala Perdida e Pra onde Vai? Talvez lidemos com o descaso dos poderes públicos, o desemprego e a falta de diálogo e compreensão sobre assuntos que não poderiam ser evitados, tais como em Sem Saúde, Dança do Desempregado e Cachimbo da Paz.
De repente, a gente tá lidando com nós mesmos, com nossa solidão e a procura em 2345Meia78 e +1 Dose.
Ou, quem sabe, em meio de tudo isso, tirar uma com os amigos em En La Casa? Dar aquela desanuviada dessa vida corrida, urbana, sofrida e partir pra’quele tubo, daquela onda perfeita, mesmo que a gente tire essa onda com quem nos faz bem, onde nos faz bem, improvisando nossa prancha em Eu e a tábua de passar.
Caramba, a arte tá com a gente. Correndo por nós e nós correndo por ela. É esse o corre. Não tem como não deixar de reverenciar, nesse recorte de um Brasil se reestruturando, aqueles artistas que estão por nós, não é mesmo?
Festa da Música vem para finalizar as rimas de seu grande quebra cabeça reverenciando quem sempre deve (ou deveria, ainda mais hoje) ser reverenciado. É cultura, caramba!
Ahhhh e finaliza com o instrumental, os beats do Sopro da Cigarra, que tá tudo bem!
Vamo encaixando
Pow!
A última peça se encaixou e o Brasil de lá até parece o Brasil daqui. Talvez esse quebra cabeça precise ser montado e desmontado sempre, sabe? É aquele lance de desconstruir. Cê pega o macro, tira peça por peça, aprende e compreende cada uma, até montar de novo.
A coisa tá difícil. Tem muita treta e trampo pra arrumar a casa. Mas também tem um espacinho pra celebração.
Quebra cabeça foi minha entrada no rap. Caramba, tinha nem dez anos de idade, segundo meus pais. Era o caderninho com as letras e eu lá cantando, sem nem fazer ideia do tamanho e da potência que o álbum trazia. Isso era 2002.
Hoje, 2020, é preciso dar aquela desmontada de novo.
Até porque, foi necessário Tô feliz (matei o presidente) 2, em 2017 (ainda não censurado em 2020, mas, infelizmente, não garanto nada), pra nos dizer que precisamos nos reconstruir frente ao presente que estamos passando.
Vamos passar por essa, tenho certeza na luta e no quebra cabeça que a gente vai superar.
É nóis.