O Shun que existia em mim

Gabriel Martins
Revista Subjetiva
Published in
4 min readDec 11, 2018
(Reprodução TV)

Eu sou uma criança dos anos 90. De jaqueta jeans da Hard Rock, camisa de telinha do Baby da Família Dinossauro e Tamagochi apitando no bolso enquanto a missa não termina de ser celebrada. Em 1994, eu atingi minha primeira década rodeado de que até hoje ecoam na minha vida adulta até hoje. Em setembro daquele ano, estreava na TV Manchete um anime, talvez minha primeira exposição a animação nipônica, sobre um grupo de garotos órfãos, mandados para os confins do planeta para treinar, aprender e fortalecer o que depois seria missão de defesa da representação de uma deusa lendária na terra em tempos atuais.

Com essa premissa, Os Cavaleiros do Zodíaco virou um fenômeno com velocidade praticamente instantânea sem precedentes — não só para os padrões da época como para qualquer leitura de impacto cultural que fazemos atualmente. O merchandising atingiu o Brasil em cheio em meados de 95, quando os produtos (licenciados ou não) lotaram as lojas de departamento e brinquedos e o imaginário das crianças que, de repente, tinham uma lista de natal que não sabiam precisar. Eu fui o primeiro menino da rua a ganhar um boneco dos Cavaleiros do Zodíaco — um objeto de desejo, mas acima do orçamento de todos os pais da favela onde eu morava. Como se fosse hoje, ainda me lembro da minha mãe avisando que tinha economizado, depois de alguns meses, e que me levaria na loja de brinquedos no centro da cidade. Lá, ela me me disse “Escolhe aí seu bonequinho”. Lá fui eu feliz da vida pelos corredores e prateleiras da loja e fiz a escolha que desde o inicio eu sabia que era natural: meu primeiro boneco dos Cavaleiros do Zodiaco foi o Shun, de Andrômeda.

A armadura do Shun replicava o busto da princesa da Etiópia, Andrômeda, que, de acordo com a mitologia grega, foi oferecida em sacrifício a um monstro marinho devido sua inédita beleza na linhagem real da Etiópia. A armadura fora do corpo do cavaleiro era bonita, tinha uma leveza e delicadeza que gerava (pelo menos pra mim) um impacto que as outras não tinham. E foi esse um dos motivos pelos quais eu peguei a caixa do Shun na prateleira e levei feliz da vida para o caixa com minha mãe. O mais importante talvez seja o fato de que o Shun, pra mim, uma criança crescendo no ápice dos anos 90, sempre foi uma representação imediata e clara de quem eu me enxergava: um menino chorão. Era assim que minha mãe me enquadrava, era assim que meu pai (pouco) me recriminava, era assim que meus colegas da rua me sacaneavam. Frágil (porque chorava), protegido pelos pais (porque não estudava na escola pública da favela), sem força para brigar na rua (porque era gordo) e sem conhecimento do que era realmente a vida dos garotos da minha idade (porque antes das 20 horas eu devia estar em casa de banho tomado).

Durante muito tempo, eu carreguei a sensação de desvantagem que cultivei nessa época quando avaliava minha postura e minha abordagem para situações diversas. Talvez por não ter vivido a mesma vida que meus colegas da rua, mas principalmente por não me enxergar representado em nenhuma das expectativas que eu via na TV. Era quase como se eu tivesse só permissão de me identificar com um personagem que muitas vezes era subjugado por demonstrar sentimentos que deveriam ser represados. Era não, sempre foi dessa forma que construímos nossa identidade masculina na sociedade moderna. Apesar de ser o primeiro moleque da rua com um boneco dos Cavaleiros do Zodíaco, era frequente ouvir dos meus colegas “Ah, mas é Shun…”, aplicando uma inferiorização que era tão natural quanto a pressão aplicada desde muito cedo de uma masculinidade distante de qualquer demonstração de afeto ou fragilidade.

O lançamento do trailer da adaptação da NETFLIX para a saga inicial do anime Saint Seiya, no último dia 08/12, acalentou o coração dos eternos fãs da animação, sempre ávidos pelos produtos que seguem surgindo desse universo cheio de simbologia e nostalgia; mas trouxe junto uma problematização não necessária. No trailer de menos de 3 minutos, de forma frenética, como toda abordagem visual do anime, tudo que era expectativa foi entregue com sucesso: o visual dos cavaleiros, a relação com a representação da deusa Athena na terra, atmosfera pré batalha e as armaduras lendárias. O porém ficou por conta da ausência do cavaleiro de Andrômeda como conhecíamos. No lugar de Shun, fomos apresentados a Shaun, uma garota que agora veste a armadura de cavaleiro de Andrômeda.

Shun, que era o cavaleiro que era diminuído por ser menos forte, firme e viril, que nunca escondeu que se preocupava com os outros cavaleiros, que sempre pediu ajuda do irmão, mesmo quando devia endurecer, que era tido como o mais fraco, mas que sempre superava as dificuldades, que era usado de chacota nas brincadeiras de rua do meu bairro, que foi meu primeiro (e mais querido) boneco dos Cavaleiros dos Zodíaco. E que por ser isso tudo, ou até menos, era tudo, menos homem.

Pode parecer uma problematização fora de proporção sobre uma animação? Pode. Pode também refletir um comportamento tão recorrente que a gente confunde com “comum” de má representação ou escolhas incorretas? Pode também. A exclusão do Shun dessa produção tão relevante na construção da identidade de tanta gente, na verdade, é um reforço estruturado de como a opressão misógina é normalizada e, dessa vez, com disfarces muito maldosos de inclusão — coisa que a gente normalmente não percebe a primeira vez que olha. Negar, dessa forma, que haja espaço para uma representação da masculinidade na complexidade dos seus sentimentos é endossar uma conduta que é mais real do que os animes que a gente assiste, que é essa preocupação em cauterizar qualquer conexão do homem com sua vulnerabilidade.

E o que resta são muitos meninos sem a chance de ser ver (e reconhecer) entre os Cavaleiros do Zodíaco.

--

--