O sonho delirante de um amante da música

Bento Araujo lança Lindo Sonho Delirante Vol.2, uma pequena viagem aos confins da música inconscientemente psicodélica feita no Brasil entre os anos 60 e 80

Gabriel Caetano
Revista Subjetiva
7 min readJan 7, 2019

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Bento Araujo lançando Lindo Sonho Delirante Vol.2 em Estocolmo — acervo pessoal

Bento Araujo é um verdadeiro operário da música. Em 2003, época na qual trabalhava em uma loja de discos em São Paulo, resolveu criar o poeiraZine. Os consumidores paulistanos de música não acreditavam que o projeto vingaria, mas, por persistência de seu autor e um público extremamente fiel, já são 15 anos falando sobre Rock’n’Roll.

No ano de 2016, Bento resolveu ir mais longe. Lançou Lindo Sonho Delirante, um projeto literário independente e profundo sobre 100 discos psicodélicos do cenário musical brasileiro lançados no fim dos anos 60 e início dos 70. Foi um sucesso instantâneo, seja no Brasil ou lá fora. Agora, entre outubro e novembro de 2018, Bento lançou Lindo Sonho Delirante Vol. 2 e o êxito do primeiro volume já está se repetindo. Hoje, sem dúvida alguma, Bento Araujo é um dos mais respeitados especialistas de música no Brasil. Batemos um papo com ele para saber como foi o processo de criação dos dois volumes de Lindo Sonho Delirante e também sobre os 15 anos de poeiraZine.

Subjetiva - Como começou o seu interesse por música e como você chegou ao jornalismo? Foi um processo natural conforme você ia conhecendo novos discos e bandas? Chegou a se arriscar como músico também?

Bento Araujo - Acho que o interesse por música já veio comigo. Lembro de ficar escutando discos por horas, ainda criança, gamadão pelas luzes do visor do três em um. Comprei meu primeiro LP aos sete anos e não parei mais. Na adolescência eu passei a tocar guitarra e fiz parte de algumas bandas. Depois fui tocar baixo. Fui parar no jornalismo para poder continuar trabalhando com música, para ganhar discos, conhecer os meus ídolos e poder viajar. Cair na estrada e conhecer gente incrível — um anseio sagitariano, sem dúvida.

Ser da Pompeia, o grande reduto do rock em São Paulo, influenciou no seu gosto musical?

BA - Creio que sim. Os Mutantes, Made in Brazil, Tutti Frutti, André Christovam… Cresci vendo esse pessoal na padaria, no supermercado. Era engraçado. Tive bandas que ensaiavam no bairro e trabalhei em lojas de discos também do bairro. Moro na Pompeia até hoje, tá no sangue.

Sua coleção musical é extensa. Sabe quantos discos você tem e como faz para manter o seu acervo organizado?

BA- Tenho cerca de 3.000 discos, não é muito perto das coleções de alguns amigos. Faço questão de manter o acervo de discos e livros em ordem. Sempre preciso pesquisar algo, então é necessário localizar rapidamente o disco, ou o livro.

Você é fundador do PoeiraZine, uma das mais importantes publicações sobre Rock’ n’ Roll no Brasil. Na minha visão, a principal nos últimos anos. Além disso tem o PoeiraCast e foi um dos fundadores do HeavyLero, hoje tocado pelo Gastão e Clemente. Acho que podemos dizer que o Brasil vive um momento muito fraco musicalmente — não sei se você concorda. Há uma rapaziada interessada em publicações musicais? Quem é esse público e como sobreviver falando de música em um momento onde a cultura é tão desvalorizada, principalmente a musical?

BA - Muito obrigado pelos elogios! Eu costumo ter uma visão otimista sobre a música e suas adaptações ao mercado no decorrer dos anos. Creio que manter uma publicação impressa, com alguma periodicidade, ficou complicado não somente no ramo musical, mas em qualquer ramo. O grande público sempre parece interessado em outra coisa, em fenômenos de massa. O underground sempre será o underground, em qualquer lugar do planeta. Acho que o momento musical no Brasil é incrível, com bandas novas relevantes, diversos festivais pelo país, coletivos artísticos acontecendo. Acabei de participar da SIM São Paulo e constatei que a coisa está fervilhando. Creio que sempre é possível sobreviver com um ideal e com uma verdade. O que é autêntico, genuíno e verdadeiro sempre terá espaço e irá encontrar o seu público.

Bento Araujo com Jimmy Page (Led Zeppelin), Ronnie Von, Tom Zé e Rick Parfitt (Status Quo) — acervo pessoal

Quais foram os grandes músicos que você escutou e teve a oportunidade de conversar? Qual mexeu mais com você? Teve alguém que te decepcionou?

BA - Conversei com alguns caras que deixaram uma marca para sempre na minha vida: Jimmy Page, Tom Zé, Peter Hammill, Jack Bruce, Damo Suzuki, Lenny Kaye. Decepção eu não tive nenhuma, é verdade.

Lindo Sonho Delirante (ou LSD)

Lindo Sonho Delirante Vol. 1 e 2 — poeira Press

Como surgiu o projeto do “Lindo Sonho Delirante” e a ideia do crowdfunding? Com o sucesso nacional e internacional do primeiro livro, alguma editora veio te procurar para o lançamento do novo volume?

BA - O Lindo Sonho Delirante foi uma continuação natural da poeira Zine. Eu sempre tive vontade de lançar livros sobre música, então passei a me dedicar a isso desde 2016. O crowdfunding foi algo que me identifiquei de imediato, pois atuo com mídia independente e com cultura underground desde a virada do século. Depois de 13 anos de pZ e 10 anos de poeiraCast eu percebi que tinha uma base fiel de amigos, colaboradores e seguidores. O financiamento coletivo é parte desse processo de criar e manter o seu público. Algumas editoras me procuraram, mas as propostas não foram interessantes.

Como foi realizada a pesquisa para os dois volumes? Além disso você fez o projeto gráfico, que é lindo.

BA- Obrigado! A pesquisa foi muito intensa e também gratificante. A boa repercussão do primeiro volume me deu uma energia incrível para trabalhar neste novo volume. Desta vez temos 100 discos lançados entre 1976 e 1985, os últimos anos da ditadura militar no Brasil. São discos não somente psicodélicos, mas sim “audaciosos” em sua própria natureza, seja dentro do folk, fusion, rock progressivo, música eletrônica experimental, minimalismo, Vanguarda Paulistana etc. Foram dois anos de pesquisa para cada volume. A parte gráfica sempre me interessa também, desde a época de pZ.

No fim dos anos 60 você tem a explosão da Jovem Guarda, os grandes festivais e o começo da Tropicália. Já nos anos 70, a coisa ficou mais marginal e, mesmo durante uma forte ditadura, festivais musicais ocorriam em pequenas cidades, como é o caso de Londrina, onde foi realizado o “Na Boca do Bode”. Ao mesmo tempo, no Rio de Janeiro, tínhamos os bailes do movimento Black Rio e o programa do Big Boy na Rádio Excelsior. Também havia diversos festivais universitários de música por todo o país. Todos esses eventos contribuíram para a criação de uma música psicodélica brasileira?

BA- Creio que sim. O Brasil sempre foi tão imensamente rico em música que diversos cenários aconteceram simultaneamente. O da música psicodélica foi apenas um deles, que aconteceu e levamos décadas para perceber que havia acontecido. Vejo muita gente pegando meu livro e dizendo: “Cara, isso realmente aconteceu? Tem vários discos aqui que eu nunca ouvi falar e olha que eu sou brasileiro!”. Mas de forma alguma eu culpo essas pessoas. É um processo de redescoberta, revalorização. Eu mesmo passei por isso em um período muito especial da minha vida. Estamos todos aprendendo, o tempo todo, este é o barato.

Recentemente você lançou Lindo Sonho Delirante 2 no exterior. Qual é a razão de muitos desses discos serem redescobertos fora do país e só depois ganharem uma valorização aqui no Brasil?

BA - Acabei de voltar de uma turnê de lançamento do livro pela Europa. Visitei cinco países em três semanas, apresentando palestras sobre a minha pesquisa, sessões de bate-papo e DJ sets. Acho que os países colonizados atravessam sempre esse processo. O colonizador continua extraindo as riquezas do colonizado, que em algum momento começa a valorizar o seu produto. Acho que aí começa a acontecer a antropofagia, esse lance de receber a influência do primeiro mundo, deglutir e devolver essa arte como algo novo, genuinamente brasileiro, como produto de exportação.

Influências desses 200 álbuns abordados podem ser encontradas na música nacional e internacional hoje? Existe a possibilidade de um terceiro volume?

BA- Certamente! Minha ideia é contar esta história até os dias de hoje, portanto sempre me pareceu fundamental adentrar também na segunda metade da década de 70 e nas décadas de 80 e 90. Tem muita coisa bacana, ainda obscura, pronta para ser redescoberta e reeditada em disco. A influência desses álbuns estará por aí para sempre.

De todos os discos abordados nos dois volumes, qual você recomenda para o leitor da Subjetiva se iniciar na psicodelia brasileira?

BA- No fator psicodélico seria o Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho. Considero este o trabalho mais importante da música psicodélica brasileira.

Onde e como o livro pode ser adquirido?

BA-No site da poeira Zine, o www.poeirazine.com.br

Bento, muito obrigado por dividir um pouco do seu tempo com a Subjetiva e comigo. Se não fosse o PoeiraZine, jamais teria conhecido grandes bandas ou artistas maravilhosos como o Paul Kossoff. Também não saberia que os Allman Brothers, minha banda favorita, apresentavam temporadas anuais no Beacon Theatre. Você é um dos meus mestres. Muito obrigado!

BA - Puxa, que legal, é uma imensa honra para mim. Agradeço o espaço e o carinho. E vamos nessa que vem muita coisa legal pela frente.

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Gabriel Caetano
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Já fui frentista, troquei óleo de carros, limpei balcões, servi mesas, prestei serviço pra multinacionais e fiz um doc sobre o blues. Agora tô aqui, escrevendo!