O tempo é como o vento.

1º parte do conto “Margaridas”

Dandara Aryadne
Revista Subjetiva
7 min readMay 7, 2017

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O céu estava cinzento. Quero dizer, não havia nada muito especial sobre o tempo. Para ser honesta, eu não poderia enfrentar o céu, uma falta de coragem que eu não poderia explicar. Ela teria amado aquele tempo, exatamente como agora.

Olhei para o outro lado da rua e pude ver o vento enquanto encara sua árvore favorita.

Essa árvore seria como um livro perfeito da nossa história. É estranho que agora estou aqui, sentada nos degraus desta velha casa, olhando para a porta do outro lado da rua, olhando para as flores que cobrem a base da pequena caixa de correio, que depois de todos esses anos ainda estava torta. Memórias de uma corrida de bicicleta que teve um final trágico, com dois joelhos ralados e um dente quebrado.

Deixei um sorriso irônico atravessar meus lábios enquanto eu corri minha língua sobre o dente lascado. Tinha sido um longo e belo verão, e nada a impediu de atravessar a rua, me ajudar a levantar e cair no riso com o meu estado.

Eu sei, não se encaixa na realidade de alguém como eu encontrar alguém como ela, assim como ela. E o que eu sei? Em meus doze anos de idade, eu, na minha pequena, mas ampla experiência de vida, nunca tinha visto alguém como ela. O vento era meu amigo.

Enquanto eu estava limpando a folhagem de minhas roupas e tentando inventar desculpas por destruir outra caixa de correio da rua, ela riu e se apoiou contra a bicicleta quebrada. Muito maior que ela, muito maior do que eu. E o vento, suave como sempre, soprou levemente seus cabelos em minha direção.

Para ser honesta, eu não me lembro de nenhum cheiro específico. Eu só me lembro que doeu. Sim. A dor era tão intensa no meu corpo magro de doze anos, que quase caí de volta outra vez, levando ela e a bicicleta até o chão. Eu não me lembro especificamente de nada. Seu vestido, a cor de seu brilho labial, os sapatos — sandálias? — Se o dia estava claro ou chuvoso … nada. Só posso me lembrar daquela intensa dor que senti no exato momento em que olhei naqueles olhos verdes. A dor de saber, na minha tenra idade, que não poderia ser feliz um momento da minha vida sem aqueles olhos em mim.

Verde.

O início da primavera não está na cor das flores, mas na forma gentil de um verde suave, quase dourado, brincando de crescer de encontro com o sol.

Todo verão que seguiu aquela primavera, nos encontramos todos os dias, a distância de um cruzamento de rua. Se ela gritasse eu responderia, não importava a distância. Eu conseguia ouvir meu nome por quilômetros de sua boca. Sua boca... eu me lembro quando comecei a notar a forma do coração que liberava cada palavra como uma trilha sonora. Minha trilha sonora.

Tínhamos combinado de ir à praia. Eu odiava a praia, nunca encontrei qualquer razão real por que eu precisava vestir roupas desconfortáveis, tomar sol e brincar de “quem namoraria quem” naquela tarde. Mas ela me perguntou, não, ela me implorou para ir com ela. “Vai ser divertido, garanto”.

E lá estava eu, cega como um cachorro sendo guiada no escuro. Peguei minha mochila, cruzei a rua e saí. Claro que eu estava, todo o caminho, com crescente apreensão. O que eu faria lá? O que eu estava fazendo lá? Ela era a força brilhante que guiava cada grupo, cada assunto, cada felicidade. Amigos dela. Eles não eram meus amigos, eles não gostavam de mim pelo mesmo motivo que eu a idolatrava completamente. Mas o dia não foi um completo desastre. Marshmallow derretido ao pôr do sol para fechar e a noite chegou.

Ela se sentou ao meu lado e aquela apreensão voltou forte, vibrando em meu coração. Foi nesse momento que eu esperava evitar. O coração que era mantido em sua boca sorria cada vez que ela falava meu nome e eu só queria ir para ela, roubá-lo para mim e dar o meu, completamente, inteiramente, sem uma luta.

A lua já estava alta quando todos começaram a ir embora.

Nossa casa não ficava longe e ela queria ficar um pouco mais. Aproveitar o luar e o som do mar. E eu estava com ela, sem me importar se a fogueira já estava se apagando, o ar frio ou se meus tênis estavam tão molhados que eu mal conseguia pensar. Nada disso importava naquele momento, porque ela estava ali, sorrindo, brincando com a espuma do mar. E aquela dor, que vivia me seguindo desde a primeira vez que a vi, se transformou em algo tão grande em uma força tão forte que eu não podia ficar ali, eu precisava me levantar, ir até ela, correr sem parar, até estender a mão, seu coração, para tocar sua alma e ficar. Guardá-la e protegê-la de todos os medos estúpidos que alguém de dezesseis poderia sentir.

Eu tirei meus sapatos e caminhei até ela. Espremendo minha mão com tanta força, só para controlar meu desejo de tocá-la. Ela estava brincando com as ondas, as chutando com seu pequeno pé esquerdo. Aquele pequeno pé carregando uma tatuagem de uma margarida no seu calcanhar. Ela sorriu e brincou, dançou olhando para lua, pisando nas ondas, permitindo que o mar a reconhecesse como sua filha, deixando a lua a abençoar como sua irmã.

Enquanto eu olho para meus próprios pés para criar coragem, concluo o pensamento que me perseguiu toda a tarde. Dizem que o tempo é como o líquido. Que passa rapidamente, é firme e constante como a água. Nunca para. Passa com pressa pelas nossas mãos.

Mas para mim, o tempo, o tempo é como o vento. Honesto, brutalmente honesto. Tirando você do chão, arrasta-lo para lugares que você nunca imaginou, transforma a natureza, carregando as sementes. Uma semente particular, que cai precisamente em um jardim com margaridas em todo o lugar, perto de uma caixa de correio já enferrujada. Nasce uma árvore, uma árvore que vai bloquear os olhos da pessoa mais teimosa do mundo, que lutou com o irmão mais velho unhas e dentes por uma bicicleta gigante, onde meus pés mal tocavam os pedais, fazendo-me perder o controle, deixando apenas um pequeno espaço para escapar daquela velha árvore e acertar em cheio a caixa do correio …

Vê? O tempo é como o vento.

Ela parou. Ela parou de dançar. Ela levantou a cabeça e olhou para a lua cheia e pulsante que estava no céu, marcando o território sobre nossas cabeças. O vento, velho amigo meu, soprou forte e carregou para meus ouvidos seu suspiro pesado.

— Qual é o problema? Você não se divertiu hoje? — Eu perguntei sentindo a insegurança ficar mais forte no meu coração. Ela olhou para mim por cima do ombro e sorriu.

— Não, foi perfeito. O jeito que eu te prometi. Mas acabou e eu não queria que terminasse. Eu queria que todos os dias fossem assim, desse jeito. Eu, você, a praia, com o sol e a lua, todos ao mesmo tempo, todos os dias. Nenhuma dor, nenhuma luta, nenhuma desgraça ou coisas ruins a dizer.

Aproximei-me e segurei-lhe a mão. Era tudo que eu podia fazer. O que eu poderia fazer por ela? Tudo que eu tinha para oferecer era eu, sem tirar nem por. Então, como eu poderia ser o suficiente para destruir as coisas ruins que ela estava sentindo?

Ela segurou minha mão firmemente, eu fiquei lá, olhando para o meu destino dentro da primavera verde de seus olhos. Ela sorriu e chamou minha atenção para sua boca. O vento me puxou, eu me aproximei, apenas alguns passos. Não satisfeito, o vento me empurrou ainda mais forte e fiquei tão perto, mas tão perto, que eu podia, com o luar, ver os fios dourados de seus olhos.

— Jane…

Minha voz não terminou o que meu coração queria gritar. Eu apenas me empolguei com aquele coração batendo em sua boca, e eu o roubei por mim. Com ansiedade, como se eu precisasse trazer de volta a minha outra metade. Eu não conseguia parar. Eu não queria abrir espaço para que pudéssemos respirar e quando nossas línguas se tocaram, meu corpo explodiu em chamas e eu me agarrei a ela, seus seios pequenos no vestido suave, ainda molhados com o biquíni. Queria embrulhar suas pernas ao redor da minha cintura, tocar seus cabelos e sufocar-me com seu perfume, seu cheiro de mar e árvore, e vento, cheiro de tempo... Não consigo respirar…

Mas foi ela quem me empurrou. Foi ela que quebrou todo o fluxo da minha fome. Ela se agarrou a mim como se ela precisasse de apoio para respirar e eu a abracei, querendo mais. Ela olhou para a minha boca e eu pensei que seria o momento em que ela fugiria, o exato momento que eu coloquei tudo a perder pela minha ganância de querer sentir o que eu estava procurando por tanto tempo. Ela olhou para minha boca sem saber que meus olhos refletiam meu pânico de perdê-la.

E para minha surpresa, ela sorriu. Ela abriu aquele coração gigantesco, guiou meus braços até sua cintura, me trancou em seu corpo. Olhou nos meus olhos e eu me preenchi de todo aquele verde, com todo aquele vento e ouvi pela primeira vez, em dezesseis anos, meu nome, vindo diretamente de seu coração.

— Rachel.

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Dandara Aryadne
Revista Subjetiva

Crítica de cinema, escritora sem destino, trabalhando com tecnologia e artista frustrada