O texto dos abraços

Ana C. Moura
Revista Subjetiva
Published in
4 min readMay 12, 2020
O Abraço, de Gustav Klimt. Ano: 1905–1909. Técnica: mista (têmpera, aquarela, giz e lápis branco sobre papel). Dimensões: 194 x 121 cm. Localização: Österreichische Museum für Angewandte Kunst, Viena (Áustria). Painel que compõe um trio feito pelo artista para ornamentar o refeitório de uma vila em estilo Art Nouveau, em Bruxelas, na Bélgica. A decoração feita com enormes mosaicos recebeu o nome de O friso Stoclete. Imagem extraída deste site.

Se você já foi destinatário, direto ou indireto, de alguma palavra que eu escrevi (ou se nunca foi e está sendo a primeira vez agora —a propósito, bem-vinde, chega mais), saiba: eu amo abraços. Com o corpo e com as palavras. Antes, eu achava que só gostava de abraçar com as palavras, mais com as palavras, não com o corpo, menos com o corpo. Mas isso não é nem um pouco verdade; isso, quando era aqui, nunca foi meu. Ainda que não pareça, do meu jeitinho, eu gosto mesmo de abraços. Todos.

Em parte, isso explica por que este contexto, que pede o escasso/nenhum contato, me afeta tão profundo. Em parte, porque há inúmeras reflexões que me rondam e me preocupam. E, olha, não me interprete mal. Dizer isso não é negar a necessidade, a urgência do distanciamento como medida de contenção da pandemia. Pelo contrário, e daí o porquê de seguirmos em casa (sabendo que nem todos têm condição de fazê-lo efetivamente), furiosas com a tendência de flexibilização (inclusive do desgoverno atual) que faz pouco caso dos riscos e que a gente tem observado acontecer gradualmente. O que eu quero dizer é que é triste, em tantos sentidos, que a gente esteja passando por tudo isso assim. Foi meio de repente e se arrasta pelas incertezas todas, mas, mesmo se não tivesse sido no repente, teria sido dolorido também. De algum modo, a gente sabe que vai passar, mas não saber exatamente quando vai passar e o que vai ficar depois de tudo isso é estranho. É tanto e muito mais e é também assunto para, quem sabe, outro texto. Mais palavras.

O que eu quero dizer é que gosto de ficar só, gosto de ficar em casa, curtir um tempo comigo mesma, tranquilinha no meu cantinho, nesse lugar que me dá paz, mas também gosto de sair para ver o entorno, ver gente, de abraçar as minhas gentes. E então voltamos ao lance do abraço.

Por, como o Olaf de Frozen, gostar tanto de abraços quentinhos, desenvolvi uma forma de abraçar com as palavras. É um jeito de complementar o abraço do corpo, de alcançar as pessoas com palavras quando nada mais pode, quando alguma distância aperta. É que acredito na linguagem também como afeto, na palavra também como aconchego, isso que nos amalgama de algum jeito.

E lógico que tudo é uma questão de equilíbrio e de momento, mas daí que muitas vezes me pego tentando escrever uma escrita afetiva, um jeito de comunicar algo que possa ecoar bonito no seu peito e tirar você para dançar. Você, pessoa que lê o que eu escrevo. Você, pessoa amiga que me abre seu coração contando da conversa com o xodó. Você, que tá confuso com a vida, e às vezes busca um alento. Você, que tá de aniversário agora, na pandemia, e queria muito um abraço. Você, que esteve (ou estará) de aniversário fora da pandemia e eu já te dei (ou vou te dar muito em breve) um abraço do corpo, mas que, mesmo assim, senti que cabia também um abraço de palavras. Você, que eu morro de vontade de concretizar um abraço do corpo e por algum motivo não posso no momento desta vida louca vida.

O abraço de palavras é um chamamento para deslocar os sentidos, um jeito de movimentar umas coisas em você e chamar o seu coração para dançar. Nada está ali por acaso, cada escolha é uma intenção, tudo. É uma escrita que tenta ser amuleto, um jeito de comunicar que tirei um tempo para escrever para você, algo que é só seu, porque um texto nunca fica igual ao outro.

E texto, eu falei texto, sim. Porque abraços de palavra com frequência são textos, o tamanho varia um tantinho, às vezes eu juro de pé junto que vai ser só um filetinho d’água, nem tenho tanto a dizer assim, mas aí quando eu vejo puf, virou um ribeirão de duas margens, seis parágrafos, um documento em três vias, uma redação do Enem, uma dissertação de mestrado. Acontece, a palavra é livre. Dizeres podem ser caudalosos. Dizeres podem ser escandalosos. Porque o afeto, algum afeto, é mesmo um escândalo.

O abraço, seja ele de palavra, seja ele do corpo, não tem muitas regras. Porque, livre, é todo guiado por um sentir. Mas, como todo o resto nas nossas ações, nas nossas relações, deve permear o respeito ao espaço da outra pessoa, daquela com quem pretendemos viver os abraços, algum. Porque tem quem não goste tanto deles, por n motivos, e é preciso que a gente compreenda isso e não cause desconforto por atravessar a linha.

Por fim, o abraço das palavras não substitui o abraço do corpo. Não, não. E, francamente, nem o contrário. Cada qual com o que tem de imenso a oferecer, inclusive com suas limitações, e tá tudo bem. E até existe alguma beleza muito profunda nisso.

Comecei este texto ouvindo Um Abraçaço, canção de mesmo nome do álbum do Caetano Veloso, e fui sem grandes pretensões e sem saber muito bem que rumo ele tomaria. Acho que, por mais que na minha cabeça fizesse algum sentido, ele transitou pelos abraços, e pode ser que você tenha ficado assim: ????, e se perguntado qual era o ponto dele: falar sobre o abraço do corpo, falar sobre o abraço da palavra, ou falar sobre os dois. Acho que podemos ficar com a última opção; o texto trata, sobretudo, de abraços. Ponto. E ele termina assim mesmo, sem uma conclusão definida, sem um fechamento surrealmente lindo ou genial, capaz de arrancar suspiros seus, que chegou até aqui. Faz parte. Chegou a hora.

*O título deste texto tem como referência O Livro dos Abraços, do gigante Eduardo Galeano. De resto, acho que dispensa maiores explicações.

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Ana C. Moura
Revista Subjetiva

• Poeta • Revisora • Tradutora • Editora de Projetos da Fazia Poesia • A fúria como fôlego • A palavra como teimosia • O lirismo como libertação •