O tribunal da Globo e a sentença “fantástica” contra o direito ao futuro

A ocasião faz o ladrão — e nós, o que fazemos com isso?

_erinhoos
Revista Subjetiva
6 min readMar 20, 2018

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Frame de Ilha das flores, Jorge Furtado (1989). Curta retrata, dentre outras coisas, o cotidiano miserável da população periférica de Porto Alegre (Rio Grande do Sul) no poente da década de 1980.

No dia 21 do último janeiro, o Fantástico veiculou uma reportagem com o seguinte mote: “ladrões de celulares são desmascarados com uso de aplicativo espião”. A reportagem (clique aqui para vê-la) apresentava o percurso de dois celulares furtados nas ruas de São Paulo e Porto Alegre. Por meio de uma parafernália sofisticadíssima, os repórteres puderam identificar e seguir aqueles e aquelas que, tendo a oportunidade de adquirir um celular mediante furto, assim o fizeram.

Acho que somos todos modernos (e liberais) demais para entender que o direito à propriedade é inalienável, sagrado e indispensável ao exercício da nossa liberdade individual. Roubar é feio — e fica mais feio ainda quando estamos falando de civis. As pessoas se escandalizam muito facilmente com furtos ordinários, mas parecem não achar tão hediondo assim o assalto franco ao “bem público”. Mas vamos suspender nosso senso comum individual e moralista por um segundo para analisar com um pouco mais de atenção esse “fantástico” e lamentável episódio.

A cena mais marcante da reportagem para mim — e não consegui assistir ao vídeo mais de duas vezes de tão violento que o considero — , é quando uma senhora é abordada pelo repórter, de forma que seu gesto corrupto é revelado e explicitado. O semblante dessa mulher aos poucos se desmantela conforme fica evidente para a mesma sua condição de espionada, e que sua índole, então, passava a ser moralmente negativada perante o julgamento de estranhos.

O direito a ter direitos

Teria a reportagem o direito de expor as pessoas envolvidas da forma como fez? Como fica o direito à defesa garantido constitucionalmente? Ao expor essas pessoas pobres à audiência de milhões em sua vitrine moral, a equipe do Fantástico se outorga o direito de legislar sobre o futuro daqueles envolvidos. Vale questionar a atitude da equipe.

Observemos o perfil social dos assim chamados «ladrões»:

Após o flagra por parte da reportagem, o que resta em poucos segundos de conversa é um pedaço nu de gente. Uma pessoa pobre, afundada na miserabilidade de sua condição. Empregada de uma empresa terceirizada, proletária, encarregada de servir cafezinho para burocrata, que foi prontamente demitida. Seu “comparsa” é um gari, e seu vínculo com o trabalho, segundo a reportagem, estava sujeito a um processo de exoneração. São pessoas de idade, pessoas vulneráveis, pessoas com vínculos trabalhistas frágeis, com garantias de previdência burlescas. O terceiro “ladrão” destacado na reportagem é um jovem negro, a vítima privilegiada do genocídio racista em curso neste país.

Ao expor essas pessoas pobres à audiência de milhões em sua vitrine moral, sem antes ter dado a elas o direito de pronunciamento, a equipe do Fantástico encarnou ela mesmo a Justiça. Quando e como essa função foi outorgada à emissora? O que sobra destes seres humanos depois da veiculação dessa reportagem a milhares de lares ao longo de um terreno continental e também do posterior armazenamento e propagação dessa data-matéria na nuvem e nas redes sociais?

E você, leitor, o que vê nessa imagem?

O direito ao futuro

Nos dias de hoje, uma das palavras mais constantes no “que-país-é-esse?” — dos editoriais às esquinas, dos discursos às conversas de bêbados (o que, às vezes, vem a ser a mesma coisa) — é Per-ple-xi-da-de.

Volta e meia me reencontro com esse trecho do manifesto impresso no encarte do LP Transversal do tempo da Elis Regina, de 1978. Passaram-se quatro décadas e esse continua sendo um dos sentimentos mais comuns para grande parte de nós brasileiros quando nos deparamos com a complexidade de algumas de nossas mazelas. O fato que ora analiso traz consigo uma cascata de problemas.

Como lucidamente ponderou meu colega Mirsad Ibrahim, primeiro a própria Rede Globo, por meio da sua relação íntima com a máquina de marketing, faz coro à propagação do desejo por bens de consumo (como celulares), para depois, com o poder moral nela investido (e ratificado pela inépcia dos teventes), meter aquela mulher — que até então estava satisfeita pelo acesso improvável a um smartphone extraordinário — numa cena de 007 que acaba com uma condenação de pena perpétua.

Vila Grande Cruzeiro, uma das maiores comunidades de Porto Alegre (Rio Grande do Sul). Fonte aqui.

Em primeiro lugar, trata-se da manutenção de alguns lugares-comuns que ainda nos surpreendem, além do óbvio “roubar é errado” — aquele de que a subjetividade de quem comete algum delito é violável.

Naturalmente, essa noção tem marcas profundamente relacionadas a raça e classe no Brasil. Por outro lado, coloca-se também a questão do poder atribuído à concessão pública. Esse poder constrói consensos morais utilizando muitas vezes uma linguagem sensacionalista. E mais: esse poder pauta que/quais fatos, ideias e crenças são importantes para opinião pública — inclusive, neste caso, com uma abordagem moralista. Esse poder, ademais, vende! Ele bombardeia pessoas pobres (como aquela senhora) de propagandas que fazem crer que a felicidade é portar um celular bacana.

A “criminalidade” — ou simplesmente o gesto de confiscar ilegalmente um objeto pertencente a outro — nasce muitas vezes dessa torrente ideológica consumista. De um lado temos o baixo poder aquisitivo do brasileiro médio, pois a população padece da (esta efetivamente criminosa) má distribuição de renda, que não permite muitas vezes o acesso ao sonho que a propaganda bombardeada promete. Daí que surgem várias metodologias que são meras desculpas para portar a felicidade-em-forma-de-telefone no país do “jeitinho” e dos convênios entre diversas estirpes de bandidos.

Do outro lado vemos que para umas poucas centenas de homens brancos ricaços comprometidos com a área financeira, o agronegócio, a indústria da comunicação, os bancos, etc., basta utilizar de maneira hábil o $eu poder para evitar a exposição pública.

Quando o saque do “bem público” se inflama e se torna visível, ainda assim, são homens encastelados em mansões, com guarda-costas e carros blindados. São pessoas com direitos. São pessoas com direito ao futuro — senão portadores da convicção de que existe um futuro pós-flagrante. “Criminalidade” e “direitos” no Brasil têm classe social e cor.

Parece, por fim, que a importância individualista e urgente da proteção patrimonial é alçada por essa reportagem infeliz a um lugar muito mais relevante do que a assistência a uma população que envelhece, demanda e carece de necessidades reais de cuidado e previdência. Uma parcela da sociedade que tem assistido perplexa ao fim de seus direitos, pessoas que têm frágil penetração no mercado profissional e precisam mais do que qualquer coisa de garantias de um futuro calmo e saudável. Mas o escândalo sempre é maior quando se trata de pautas que concernem ao indivíduo, e não ao coletivo.

Quando encontrei o perfil daquela mulher no Facebook, o qual acessei para mandar uma mensagem de solidariedade (coisa que essa senhora pouco deve ter tido depois do dia 21), a primeira coisa que vi foi sua imagem abraçada com o neto, embevecida e orgulhosa. Estaria aí o retrato da criminalidade no Brasil? Ou só mais um testemunho de que neste país de tradição autoritária e população acrítica, é livremente chancelado às grandes instituições o direito de tratar pobres como lixo?

O que esperamos do “alto” jornalismo é uma cobertura relevante, ética e justa dos fatos cotidianos. Mas este texto não é tanto mais uma crítica dentre tantas outras que são endereçadas às grandes redes informacionais no Brasil, senão um alerta voltado para uma discussão urgente acerca do pleito (popular) pelo direito ao futuro.

Quando permitimos aos gigantes da comunicação legislar sobre nossas vidas e as vidas de nossos iguais, estimulando um canibalismo social entre classes, perdemos nossa autonomia como cidadãos.

Nós, a massa, abrimos mão do nosso direito de ter autonomia e controle sobre o nosso futuro toda vez que autorizamos essa máquina impiedosa exercer tal arbitrariedade contra nossos pares. Quem cala, consente. E o que se consente aqui é a manutenção de um consenso que define que a pobreza e a criminalidade não são mazelas sociais, mas sim tão somente idiossincrasias da índole pessoal de alguém.

A história que eu conto aqui é uma fábula sobre a perda da capacidade de criticar o mercado, de reconhecer as mazelas de si no rosto desesperado de seu igual, de reivindicar um futuro para si — ou, aliás, para todos nós.

Agradecimentos especiais: Cassius Gonçalves e Mirsad Ibrahim.

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_erinhoos
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_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas